quinta-feira, outubro 28, 2004

Quando a Solidariedade se torna Autófago da Democracia - Parte Um: Solidariedade e Competição

O “cabouco” da solidariedade está inscrito na natureza biológica do homem. À semelhança de muitos outros seres vivos, o ser humano nasce “prematuro” (a sua sobrevivência exige a intervenção activa dos pais durante vários anos) e só se realiza na vida (enquanto continuidade biológica) através da união com outro ser humano de sexo oposto.
A biologia estruturou a solidariedade, primeira, centrada nos pais (em especial na mãe), portanto na óptica da Família.

Do mesmo modo, o “cabouco” da competição está inscrito na natureza biológica do homem, na medida em que o individuo precisa de assegurar a respectiva sobrevivência e procriação, que se realiza frequentemente contra e ou apesar de… . Ou seja a competição está centrada na óptica do indivíduo adulto.

Consequentemente a solidariedade é, basicamente, intra grupo e a competição inter grupos.

Sobre essas necessidades (enquanto “imposição”) biológicas foram-se estruturando não só a mente humana como a respectiva organização social. Ou seja, sobre aquelas necessidades biológicas, primeiras, estruturaram-se formas progressivamente mais complexas de solidariedade e competição.
Habitualmente fundamenta-se as atitudes de solidariedade ou competitivas em motivações próximas contudo as suas raízes estão lá, na organização biológica do ser humano.
A História é um imenso manancial de informação sobre o como se processou essa evolução, das formas que foi assumindo a solidariedade e a competição na sociedade humana.

A associação entre a solidariedade, no seio da família e do grupo com as mesmas origens (clã, horda, etc.), e a competição muito cedo tomaram forma na História humana: saques, razias, conquista de melhores “espaços”, etc. tomados aos outros – os bárbaros - em benefício de um grupo de iguais (no sentido de distinto desses “outros” –os bárbaros).
A isso seguiu-se, frequentemente, a “conquista” do Governo de povos, previamente subjugados à força, e o surgimento de uma mais clara distinção entre governantes e súbditos (e mesmo escravos). Os primeiros governantes terão sido, na maioria das vezes, etnicamente distintos dos súbditos.

À semelhança do que se observa na evolução biológica, a associação entre solidariedade entre iguais e a competição com os outros pode-se ir transformando e assumir mesmo a forma de simbiose quando esta relação deixa de implicar a destruição do outro e se torna suficientemente contínua ou periódica. No fundo a simbiose surge por imperativo da proximidade e da correspondente relação.

Está-se como que perante uma fusão entre os interesses solidários de alguns e as consequências da respectiva imposição aos outros. A chave e a fechadura como que se auto constroem nessa relação.

A solidariedade entre iguais e a competição com os outros cede lugar a relações simbióticas cada vez mais complexas, em que as deslocações verticais e horizontais entre iguais e outros aumentam progressivamente com o tempo e com a consciência das vantagens derivadas da especialização funcional na sociedade respectiva.

A História mostra que normalmente essa relação começa por ser imposta (à força, física e ou ideológica) por uma das partes sobre a outra, embora esta beneficie de algum modo dessa relação (primariamente o direito à vida e “protecção”). A isso não é estranho (aliás, é-lhe complementar) o desarmamento dos súbditos e as restrições à liberdade (de informação, deslocamento, associação, etc.)
Ainda hoje a actuação das Máfias assegura “protecção” de modo muito semelhante e os Governos “promovem” a “protecção” (no emprego, na reforma, na saúde, contra os inimigos, etc.; às vezes até criando “inimigos” e “medos” imaginados).

A noção de Nação (como agrupamento bastante mais alargado de iguais – eventualmente, cidadãos) e a noção de direitos, universais, de igualdade entre os homens são conceitos muito recentes na história humana.
A escravatura não foi ainda totalmente abolida no Planeta e o século XX foi marcado por fortes combates anti racistas. Aliás, ainda hoje alguns desses conceitos de igualdade universal não são “aceites”, na prática, em todo o Planeta, sendo um bom exemplo as actuais guerras étnicas e os sistemas políticos ditatoriais. O dito “confronto” entre Civilizações está na ordem do dia.

Mas mesmo nas sociedades humanas aonde esses valores, ditos universais, são aceites; o “cabouco” biológico (mais propriamente bio – social) da Solidariedade (intra grupo) e o “cabouco” da Competição (inter grupo) continuam a operar activamente. A expressão “interesses Corporativos” exprime muito bem essas relações.

O conceito de solidariedade alargada a grandes comunidades humanas para além da Nação também se está ainda a construir. São exemplo as Nações Unidas, a União Europeia, etc.

Portanto desde a origem do homem histórico (até aonde é possível fazer-lhe a história) até aos nossos dias, o conceito e a prática da solidariedade e as formas e “normas” da competição evoluíram imenso. Contudo os caboucos biológicos estão lá e os interesses simbióticos de todos perante todos é cada vez maior e, felizmente, cada vez mais conscientes.

Sem dúvida que, no Ocidente, as Igrejas Cristãs tiveram um papel essencial (ou mesmo decisivo) no alargamento do conceito de solidariedade a grupos humanos cada vez mais vastos e etnicamente distintos ao considerar, nomeadamente, que todos os homens são filhos do mesmo Pai – Deus. De igual modo influenciaram a competição inter grupos e muitas das formas em que se foi estruturando.

As modernas sociedades democráticas são exemplos deste estádio último (sob o ponto de vista cronológico) de evolução dessas relações entre os homens.

sábado, outubro 16, 2004

O Sol anda à volta da Terra: como se pensa a realidade social.

De facto muito do conhecimento que se pensa deter da realidade social continua ao nível da interpretação do que se fazia, há muitos séculos atrás, em algumas outras áreas do conhecimento.

Não deixa de ser verdade que o “conhecimento” se inicia primariamente ao nível das sensações que nos são transmitidas pelos nossos sentidos. E sem dúvida que no caso vertente: o Sol anda em torno da Terra.
É essa a (ilusão da) informação que chega aos nossos sentidos e é essa a interpretação primária (no sentido de “primeira”) que fazemos dessa informação.

Isso não significa porém que o conhecimento primário não seja suficiente para “satisfazer” grande parte das necessidades “diárias” das sociedades humanas.
Durante milénios o homem viveu só com esse saber primário e ainda hoje a maioria das pessoas de grande parte do planeta só detém este tipo de conhecimento.
E apesar dos esforços realizados ao longo nos últimos anos o nível de conhecimentos relativos às áreas sociais continua muito próximo da do saber primário.

Tal estado de coisas não é de admirar uma vez que o conhecimento do “social” lida com Sistemas Complexos Adaptativos, nos quais dificilmente se conseguem aplicar os modelos de análise das ciências exactas. Nomeadamente as relações de causa – efeito não só envolvem normalmente muitas variáveis, difíceis ou impossíveis de isolar, umas das outras como os efeitos retroagem sobre as causas.

Sem dúvida que as ciências sociais há muito que lidam com esta dificuldade e têm procurado recorrer a métodos que proporcionem alguma abordagem que lhes permita entender o que está para lá da “descrição” dos “factos” e tentem “isolar” o observador do objecto de observação.

Contudo o “facto” de se saber que se lida com Sistemas Complexos Adaptativos deveria ser suficiente para levar a uma atitude suficientemente cuidada quando se reflecte sobre a realidade social, qualquer que ela seja, porque a probabilidade de se ver “o Sol girar em torno da Terra” é com certeza aí muitíssimo elevado.

Quando o nível de comentários dos “especialistas” das respectivas áreas do conhecimento é idêntico ao do “homem da rua”, quando os problemas sociais repetitivamente descritos e “resolvidos” persistem em manter-se é quase certo que estamos a ver “o Sol girar em torno da Terra”.
E quando o cidadão, por ser “eleito” ou “por ser o que mais se faz ouvir”, passa a ser especialista e a ditar as “regras”, então seguramente “o Sol gira em torno da Terra” e a ciência deixou de o ser.

E seguramente o Sol girará para iluminar mais uns que outros.

Mas isso não é mais do que um dos aspectos a ter em atenção no Método quando se estuda e procura interpretar este Sistemas Complexo Adaptativo que é a Sociedade Humana.

domingo, outubro 10, 2004