quinta-feira, dezembro 09, 2004

Como uma Sociedade que pretendia vir a ser “Perfeita”evoluiu para a Autodestruição


O conhecimento da História das várias sociedades humanas e a comparação entre elas constitui uma ferramenta importante (para não dizer: insubstituível) para muitas das Ciências Sociais. Aliás para as Ciências Sociais o “laboratório” História é, de certo modo, o equivalente ao “laboratório” Natureza para as Ciências da Natureza.

Infelizmente não é um “laboratório” tão passivo e manipulável como o das Ciências da Natureza mas a História é a realidade (– manifesta) do comportamento humano no seu todo. Por outro lado sendo as sociedades humanas sistemas complexos adaptativos (sistemas abertos) é mais difícil interpretá-las e compreendê-las do que a dos sistemas tratados pelas Ciências da Natureza (sistemas fechados, na generalidade).

É também neste quadro, de “laboratório” vivo do homem – embora “passado”, que interessa conhecer e reflectir a história de outras sociedades para tentar vislumbrar e entender que eventuais “leis sociais” movem as nossas sociedades para além das vontades (!) de cada um ou de “muitos”.

A reflexão sobre a eficácia e os riscos da Democracia ganha imenso com o conhecimento sobre as sociedades modernas que seguiram formas distintas de desenvolvimento humano.

Ora quase em simultâneo com o desenvolvimento da Democracia no Mundo Ocidental desenvolveu-se um outro sistema de organização politica, económica e social das sociedades humanas: o Socialismo, primeiro na Rússia e posteriormente em várias outras partes do planeta.
A queda do muro de Berlim marca formalmente o falhanço da experiência socialista face à experiência democrática representada até certo ponto pela organização politica, económica e social realizada nos EUA, uma vez que só posteriormente grande parte do próprio dito mundo ocidental se foi progressivamente “assenhoreando” e implementando valores idênticos ou similares aos americanos.

Contudo a extraordinária e rica experiência humana realizada nos Países Socialistas merece ser profundamente estudada em todas as suas vertentes pois sem dúvida poderá ajudar a reflectir e ajudar a compreender mais do “processo” da História e portanto de nós e das nossas sociedades.
Também não se pode colocar de lado que “erros” semelhantes não venham de novo a ser cometidos; aliás que já não “venham a caminho”, com novas roupagens.

Marx e Engels e posteriormente os seus seguidores, inclusive muitíssimas formações ideológicas aparentadas (bolcheviques, marxistas-leninistas, maoistas, trotskistas, etc.) sustentam não só uma interpretação da dinâmica do “devir “histórico (e uma filosofia global, unitarista e unificadora: o materialismo dialéctico) mas também (e como consequência) uma nova forma de organização da sociedade.

A nova sociedade deveria permitir o surgimento de um homem novo, livre e igual, não sujeito a qualquer tipo de exploração e espoliação, solidário com o seu próximo e assegurar o desenvolvimento integral e harmonioso de cada um e de toda a sociedade.
Não é exagerado afirmar que a pretensão socialista seria conduzir o homem de novo ao “paraíso”, há muito perdido. Aliás, quanto aos fins, a solidariedade socialista não é muito distante da perspectivada pela doutrina social da Igreja Católica.

Parece-nos que o exemplo mais “puro” a estudar dessa experiência é o da ex – URSS, considerando o aprofundamento e amplo desenvolvimento ideológico que as teses de Marx e Engels aí tiveram nomeadamente tendo em vista a sua aplicação e atendendo à capacidade de auto – sustentabilidade da respectiva experiência. É pois sobre ela que irei procurar reflectir.

Não há dúvida alguma que a sociedade soviética atingiu níveis conceptuais de solidariedade social invejáveis (que só chegaram a Portugal depois do 25 de Abril).
A educação - inclusive universitária, a saúde, a reforma, etc. eram inteiramente gratuitas e universais (pelo menos formalmente) a todos os soviéticos. A habitação, a água e a electricidade, etc. eram “quase dados” pelo Estado quando disponíveis. Etc.
Era uma sociedade sem desemprego. A sociedade mantinha actividades não rentáveis ou criava sobre - emprego com vista à criação e preservação de empregos. Ninguém perdia o emprego por falência da empresa, incompetência, absentismo, etc. na medida em que o máximo que lhe acontecia seria mudar de emprego (o mesmo que os funcionários em Portugal!).
A educação, quer em extensão como em qualidade, atingiu níveis invejáveis comparativamente, ainda hoje, às sociedades democráticas do Ocidente. Em Portugal a universalização do ensino foi acompanhada pela sua contínua degradação para níveis verdadeiramente aterradores.
A URSS atingiu níveis de desenvolvimento científico e tecnológico dos mais avançados do mundo e foram mesmo pioneiros em muitos domínios do conhecimento. A Cultura (musica, teatro, dança, cinema, etc.) ficou acessível a grande parte de uma população de cerca de 300 milhões de habitantes.
Muitíssimo mais se poderia dizer e muito mais nos admiramos que isso tenha ocorrido no curto espaço de apenas três gerações, no País porventura o mais atrasado da Europa ao início da Revolução.
Não foi pois só a “moda” que levou grande número de intelectuais e cientistas ocidentais a apaixonarem-se pelas teses marxistas-leninistas. Como infelizmente não foi só a “moda” quando muitos desses intelectuais começaram, posteriormente, a criticar e abandonar essas mesmas teses.

O que correu mal? Como esta sociedade, que parecia ser tão promissora, criou a sua auto – destruição?

A resposta a esta pergunta deveria constituir uma das grandes fontes de reflexão para muitos cientistas sociais não só na medida em que se pode sustentar num efectivo “laboratório” que está disponível (e “acabado”) mas também porque marcou profundamente a existência humana de grande parte do planeta e pode constituir um imenso manancial de conhecimentos para se entender o comportamento das sociedades humanas modernas.

Olhar os aspectos positivos dessa experiência humana ou os seus aspectos negativos (ditadura e falta de liberdade, milhões de mortes, pobreza generalizada e economia ineficiente, ampla e profunda poluição ambiental, apropriação integral pelo Estado da trabalho de cada um e redistribuição ineficaz da riqueza nacional, etc.) diz pouco do que aí se passou.
É preciso procurar entender porque aconteceu desse modo e não de outro. Como se chegou a esse Sistema e como este operou para chegar ao que chegou.
É preciso entender como uma sociedade acabou por chegar ao “inferno” quando pensava estar a caminhar para o “paraíso” na Terra (e isso justificou com certeza, perante a consciência das suas elites, os milhões de mortes que provocaram e as perdas de direitos, inclusive de liberdade, dos soviéticos; aliás como “pretende” Fidel de Castro no seu livro “A História Absolver-me-á”).

A necessidade de “impor” a “igualdade” a todos os cidadãos (não só perante a lei mas também económica, educativa, de oportunidades, etc.) exigia uma ditadura. No caso vertente a ditadura do proletariado porque sendo os mais explorados do capitalismo seriam naturalmente os que mais compreenderiam, dariam “valor” e lutariam pelos novos valores de igualdade e solidariedade.
Não era pois uma ditadura qualquer, mas uma ditadura que deveria trazer em si a capacidade de acabar com a exploração do homem pelo homem e acabar com a luta de classes. Ou seja criar efectivamente um mundo “novo” de homens livres e iguais.
Consequentemente a sociedade soviética concentrou todo o Poder da sociedade no Estado e dentro deste no Executivo. O poder legislativo e o poder judicial dependiam efectivamente do Executivo, mesmo que formalmente não o fossem.
Ou seja o próprio Sistema de Poder do Estado deixou de integrar um Sistema de Contra Poderes, tão caro ao velho conceito de República.

Mas isso não bastou! Também o poder da sociedade civil deveria ser coarctado.
Tendo-se considerado que a dinâmica da História era uma consequência da luta de classes e que esta não só tinha origem na economia como era dominada pelos detentores do poder económico havia que se lhes tirar este poder. A economia do Pais foi pois totalmente nacionalizada (inclusive a terra) e os soviéticos passaram de uma “assentada” é ser todos funcionários públicos inclusive os membros das cooperativas dado que estas não eram mais que uma forma para - estatal de organização da produção a operar num mercado dirigido por uma economia planificado(!).
A economia informal, que persistiu ou se desenvolveu posteriormente, era local e tinha uma dimensão muito reduzida.
Ou seja o poder (independente) da sociedade civil, que na Rússia sempre tinha sido pequeno, deixou de existir com a revolução bolchevique e as nacionalizações que se lhe seguiram.

O Sistema de Poder na URSS ficou pois totalmente concentrado nas mãos do Estado e dentro deste nas mãos do Executivo, cujo Chefe era o Presidente (Secretário Geral) do único Partido permitido.

O Sistema estruturou-se (consciente ou inconscientemente) para que a ditadura se viesse a concentrar não só no Partido e, através deste, no Estado, mas sim numa só entidade: o Executivo …, e até numa pessoa (!): o seu Presidente.

Toda a iniciativa social independente na URSS (e em praticamente todos os domínios) passou a ser exclusiva do Estado e do Executivo.

Sem dúvida que isso proporcionou à URSS uma capacidade imensa de realização. Os “programas” podiam ser rigidamente cumpridos por toda a sociedade e sem discussão, nomeadamente no rápido alargamento da solidariedade social.
Mas rapidamente também os efeitos negativos de tal sistema se começaram a sentir: o poder foi cada vez mais ocupado pelos funcionários do Partido, a economia torna-se progressivamente mais ineficaz e como tal cada vez mais incapaz de sustentar tanto gasto improdutivo, etc.

Por outro lado como qualquer sistema, este gerou também os que nele estavam interessados não só em preservá-lo em si como em o ampliar em seu beneficio (as respectivas elites) pois embora a posse privada se limitasse quase só aos bens pessoais havia o privilegiadíssimo direito de acesso ao usufruto da imensa riqueza nacional, ou seja dos serviços e bens produzidos pela sociedade, agora concentrados num único patrão: o Estado.
Portanto o único estimulo à dinâmica social passou a ser a conquista do acesso ao usufruto desses bens e serviços na posse do Estado. Ou seja fazer parte do Partido e aceder a lugares de direcção dentro deste e do Estado.
Como este tinha um poder ilimitado (em consequência da sua concepção e também porque incriticável) a resposta do sistema a qualquer oposição foi fechar-se cada vez mais e tornar-se cada vez menos tolerante. O que não era difícil pois não havia Contra Poderes possíveis dentro da sociedade soviética.

O sistema soviético tornou-se pois um sistema fechado; um sistema fechado não só relativamente ao seu Estado mas a toda a sociedade da URSS uma vez que esta foi despojada de qualquer poder e iniciativa.
Em qualquer sistema fechado perde-se a capacidade de auto correcção aos “erros”, mesmo se detectados.
Aliás, precisamente porque, estando-se a tratar de sistemas complexos adaptativos (porque sistemas humanos), os próprios “erros” acabam por constituir-se como condições de sobrevida para uma parte do sistema (pelo menos para as elites).

Quando a “tampa” foi entreaberta, por iniciativa de um (!) membro da elite - o Chefe - com o objectivo de tentar corrigir o sistema e dar-lhe novo fôlego, foi a “explosão”! A URSS caiu como um baralho de cartas. Ninguém (!) queria aquele sistema.

Uma das causas para essa incapacidade (a de auto – correcção do sistema) terá sido sem dúvida a inexistência de Contra Poderes dentro do Estado e na Sociedade Civil.
O Sistema estava refém de um Estado omnipresente e omnipotente a toda a sociedade soviética; Estado esse por sua vez refém de uma elite de iguais (funcionários do partido) omnipresente e omnipotente a todo o Estado.

A probabilidade de sistemas políticos evoluírem desta forma (para sistemas ditatoriais e ou na posse de elites mais ou menos fechadas) é uma constante da História Humana.
Neste caso a “estranheza” está em isso ter ocorrido a um Sistema cujos conceptualizadores (filósofos e intelectuais, profundamente honestos e de boa vontade) o pensarem e estruturarem como capaz de conduzir a sociedade humana a uma sociedade nova: integral e absolutamente solidária e igualitária; proporcionando o desenvolvimento livre, integral e harmonioso do individuo e da sociedade, o termino da espoliação e da exploração do povo pelas elites, etc.

Mas mais uma vez o problema não é concluir-se que o “inferno está cheio de bem intencionados” mas sim saber como impedir que os “bem intencionados” deixem de o ser (mesmo inconscientemente) e impedir que nos conduzam ao inferno antes de chegar a ele - o inferno.

Parece-nos que o único ensinamento que se encontra na História para que os Sistemas se mantenham flexíveis e dinâmicos é o direito à liberdade e à tolerância e que estes direitos só se conseguiram desenvolver e preservar quando houve equilíbrio de Poderes, isto é com a existência de Contra Poderes que impeçam a ditadura (mais ou menos formal e mais ou menos consciente) das elites “bem intencionados” estejam eles no Estado ou na Sociedade Civil, embora os efeitos sejam muito mais dramáticos quando se concentram no Estado.
Talvez seja por isso que nunca houve ditaduras nos sistemas anglo – saxónicos, nos quais muito cedo se criaram mecanismos relativamente eficazes não só de Contra Poder dentro do Estado e se desenvolveu um forte poder (Contra Poder) na sociedade civil mas também se criou um sistema judicial bastante transparente e igualizador no direito aplicado (e não apenas no direito formalmente escrito), portanto um sistema judicial eficaz.

A ex – URSS é o exemplo das consequências do exercício do poder num Estado sem Contra Poderes algum, inclusive da respectiva sociedade civil a quem lhe foi tirada toda a independência e capacidade de iniciativa social.

A vantagem do estudo desta sociedade é que as relações sociais e as suas consequências, em especial as de Poder, aparecem aqui relativamente “puras” e fáceis de “vislumbrar” em oposição a outros sistemas nas quais as relações do mesmo tipo nos aparecem “encobertas”, em especial nas suas consequências de longo prazo, por estarem contra balançadas por alguma maior ou menor “abertura” do respectivo sistema.