quinta-feira, março 24, 2005

PORTUGAL E A CRISE: PARTE III – Salários e Impostos Privilegiados

Sobre as empresas

Até agora tratámos dos impostos a pagar pelos cidadãos e do peso destes sobre os seus rendimentos. Debrucemo-nos agora sobre as empresas.

Os cidadãos são entidades concretas e, por isso, integralmente responsabilizáveis. Inclusive a sua responsabilidade pode não só assumir formas físicas (por exemplo, restrições à respectiva liberdade) como formas morais.

As empresas são entidades abstractas (entidades jurídicas) e, normalmente, só são responsabilizáveis até ao nível do seu capital e património.
Em muitos países desenvolvidos, em especial os anglo-saxónicos, a responsabilidade dos actos das empresas é cada vez mais susceptível de imputação aos respectivos gestores. Neste caso, há alguma aproximação entre o tipo de responsabilidade exigível ao cidadão e à empresa (através dos seus gestores), na medida em que passa a haver alguém, que é uma entidade concreto e já não só jurídica, que pode sofrer de responsabilidade algo semelhante à que se aplica a um ser humano concreto.

Mas em Portugal isso está longe de acontecer, pelo que as empresas apenas respondem até ao limite do seu capital e património.
Por isso é comum, a quem lida com problemas de falências e de recuperação de dívidas empresariais, encontrar os mesmos gestores em dezenas de empresas (algumas, tacitamente) falidas ou sem património, portanto incapazes de poderem assumir as responsabilidades que esses gestores, concretos, tomaram em “nome” dessas empresas.
Por vezes é a própria lei que protege essas empresas dos credores! Mas, quem protege a sociedade dessas empresas e desses gestores?

Por outro lado o ser humano deve constituir (e constitui, em algumas sociedades) o “centro” do que deve ser a “evolução” nas sociedades humanas.
Contudo, com frequência, não é isso que se observa nas políticas desenvolvidas pelas elites de muitas sociedades; embora, seja certo que, as sociedades democráticas, são muitíssimo mais sensíveis a tal que outros tipos de sociedades.

Contudo, em Portugal, face aos impostos (e até a algumas outras disposições legais), as empresas têm vantagens significativas relativamente aos cidadãos. As empresas não só são “menos” responsabilizáveis como, nomeadamente, pagam bastante menos impostos que os cidadãos.

As percentagens de IRC não só são, em geral, menores que as de IRS como há múltiplos sectores e actividades empresariais protegidas com taxas mais baixas que as do respectivo regime geral. É o caso, por exemplo, do sector bancário (de que se fala com frequência) embora esteja muito longe de ser o único.

Aliás não posso aqui deixar de expressar a minha admiração pela forma como alguns defendem esta atitude discricionária para com a Banca: de que a protecção fiscal dada à Banco portuguesa tem sido indispensável à modernização e à aquisição da competitividade tão necessária a este sector.
Não duvido que tal tenha sido necessário ao sector bancário. Mas também não duvido que os restantes sectores económicos do País deveriam ter idêntica protecção, para que pudessem atingir semelhante modernização e capacidade competitiva.

Ou seja, se os impostos do regime geral são elevados para alguns sectores ou investimentos de origem autóctone (ou estrangeira) também serão, com certeza, elevados para os outros sectores da economia nacional!

Este tipo de comportamento discricionário do Estado, relativamente a um ou outro sector ou investimento, impede uma competição sã (e transparente) dentro da economia nacional, pode induzir distorções inter sectoriais (muitas vezes graves a médio e longo prazo) e induz o “arbítrio administrativo”, susceptível a interesses políticos e corporativos e, mesmo, à corrupção.
Não é por acaso que os países anglo-saxónicos impõem fortes cuidados (e restrições) à capacidade do Estado fixar e alterar impostos e outras taxas, bem como em conceder isenções ou excepções aos regimes fiscais gerais. A simplicidade e transparência dos seus sistemas fiscais são notórias.

Em oposição aos cidadãos, também as empresas não pagam impostos sobre o consumo, pois estes são-lhe devolvidos ou integrados nas suas despesas.

Deste modo, por exemplo, quando um cidadão come em casa é consumo; quando come na cantina é despesa ou investimento da empresa. Sobre o que come em casa a sociedade, através do cidadão, paga imposto; sobre o que come na cantina, a sociedade, através da empresa, não paga imposto!
Quando o cidadão compra uma viatura é consumo, quando a empresa lha compra é investimento.
Por isso a viatura que a empresa fornece é como que um investimento para o “bem” da sociedade e, por isso, não paga impostos. Quando a mesma viatura é adquirida pelo cidadão, tal é considerado como consumo e, como tal, como uma despesa social - um prejuízo para a sociedade, pelo que tem de pagar impostos!
Um, a empresa, não paga imposto porque pratica um bem para a sociedade, um investimento; enquanto o outro, o cidadão paga imposto, porque pratica consumo, um prejuízo social.

Neste quadro, neste tipo de sistema fiscal, está subentendido que os actos empresariais visam exclusivamente a prática de investimentos ou despesas necessárias à preservação da respectiva actividade e da responsabilidade social que assumem. Por isso, as empresas, pagam menos impostos ou, até, são subsidiadas pelo Estado.
Em oposição, quando o cidadão pratica actos semelhantes para se preservar vivo, se multiplicar, se educar, etc., não é subentendido que está a fazer investimento para benefício da sociedade aonde se integra! Pelo contrário, essas despesas são consideradas desperdício da riqueza nacional e por isso o cidadão tem de ser desincentivado a tal através de impostos brutais, comparativamente aos das empresas.

A talhe do foice, e porque o objectivo desta reflexão é ponderar a Crise em Portugal, refira-se que muitos dos intelectuais e políticos, portugueses, acham que a actual (!) Crise se resolve aumentando as exportações e não o consumo interno; subentenda-se, aumentar a “produção” e (ou) manter-se ou diminuir-se o consumo do cidadão!
Consequentemente, as medidas apontadas por tais pessoas são o aumento (ainda maior!) dos incentivos às empresas e o aumento (ainda maior!) dos impostos sobre os cidadãos!

De modo semelhante, quando o Estado e políticos falam em combate à fuga fiscal estão-se sempre a referir à fuga fiscal dos (desgraçados dos) cidadãos portugueses e não à fuga fiscal das empresas!

Sob o ponto de vista conceptual e num quadro político e societário de reforço da cidadania e da democracia, não entendo porque o cidadão tem de ser fiscalmente tão fortemente desfavorecido relativamente às empresas e, de forma tão brutal e discricionária, como o é em Portugal.

Como é natural a sociedade portuguesa foi-se ajustando a tal estado de coisas (aliás, de muito longa duração, embora sob outras “roupagens”!).
É evidente que, dentro do que lhes é possível, as pessoas procuram agir de forma racional aos “indicadores” e alavancas que as suas sociedades e Estados lhes apontam e oferecem, inclusive em termos dos valores éticos que criam e praticam.

Como as empresas pagam menos impostos e são, intrinsecamente, irresponsabilizáveis em Portugal, os cidadãos põem-se a criar “empresas” por todo o lado (incluo nisso, também, alguma da actividade liberal existente).
Deste modo, por exemplo, a viatura que algum cidadão adquire e que constituía consumo - portanto susceptível a pagar certos impostos; passa a ser considerada, quando adquirida por uma empresa, como investimento - por conseguinte sujeito a menos impostos ou, mesmo, a nenhum imposto, já que passou a constituir despesa de uma empresa! Com alguma habilidade também ainda são capazes de ir buscar ao Estado algo mais do que lhe entregaram a título de “retenções na fonte”!
Talvez exagere a minha apreciação, mas parece-me que basta dar uma vista de olhos pelas várias zonas comerciais do País e observar o número de frequentadores de algumas lojas e até do tipo de produtos à venda para deduzir que devem “encobrir” outras actividades como, por exemplo, a fuga aos impostos!

Penso não ser difícil a um fiscalista calcular o tipo e volume de despesas, a partir do qual é mais vantajoso ao cidadão fazê-las através da “sua” empresa do que de si próprio!

As empresas, para além das protecções fiscais atrás referidas, ainda têm a possibilidade de se estabelecerem, legalmente, em offshore's, pelo que ainda pagam menos impostos que os já baixos impostos a que estão sujeitos relativamente aos cidadãos.

De facto, o sistema de impostos está estruturado, em Portugal, para retirar o máximo dinheiro possível aos cidadãos (em média, 70% do salário de base ilíquido), e não às empresas.

É um sistema profundamente anti democrático, num País que se diz possuidor de uma das constituições democráticas mais avançada (!) da Europa.
É um sistema que protege o forte contra o fraco!

É, de facto, um sistema contra a cidadania! E, é um sistema profundamente cínico, porque fundamenta tal estado de coisas como se tal protegesse essa mesma cidadania!

Como querem que o cidadão, “o comum”, se identifique com este Estado?
Aliás, quem ficará preocupado se o cidadão português se identifica mais ou menos com o seu Estado (ou se as taxas de “abstenção” são crescentes), desde que esse cidadão pague os impostos que lhe são impostos e, deste modo, continue a sustentar a pesada “aristocracia de serviço” que dirige o País?

Continuando a olhar as empresas.
As empresas retêm os 23% relativos aos salários de base dos seus empregados e os 11% que os empregados devem, também, entregar ao Estado (Segurança Social). Ou seja, cerca de 34% de massa salarial.
É sem dúvida muitíssimo dinheiro, em especial numa empresa de trabalho intensivo. Seria sem dúvida um bom “lucro” se esses montantes pudessem ser retidos ad infinitum. E, é o que muitas empresas fazem: retêm esses valores o mais que podem e chegam, mesmo, ao ponto de entrar em falência - mais que justificada(!) por aquela massa monetária muitas vezes acumulada anos a fio e a que se associam outras retenções na fonte!
O que é terrível, é que é possível, legalmente, preservar esse “círculo” ad infinitum e sob gestão das mesmas pessoas: a criação e falência de sucessivas empresas com os mesmos donos e gestores, nunca responsabilizáveis pelos seus actos. E muitas vezes o Estado ainda lhes perdoa as respectivas dívidas ou até subvenciona a sua preservação com subsídios adicionais e isenções fiscais, em especial se forem “grandes” empresas (e não, apenas, empresas de “esquina”).

Quem sustenta esta depredação contínua da riqueza nacional?
Basta ponderar sobre quem paga a maior parte dos impostos em Portugal para ficar bem claro que, parte significativa desse peso, é suportado pelos cidadãos e não pelas empresas.

Concluindo: apesar dos impostos constituírem, formal e efectivamente, um pesado fardo para os portugueses, de facto a lei proporciona, a uns, muitas excepções e, a outros, obriga-os ou convida-os à criminalidade, enquanto fuga ao fisco. Inclusive, convida ao uso de formas mais elaboradas (e legalizadas), como a “empresalização” do consumo privado, a “falência sucessiva” (às vezes, até premiada pelo Estado), colocação de sedes de actividades em paraísos fiscais, etc.

Daqui podemos concluir que, enquanto muitos portugueses (penso que a maior parte) mal podem “respirar” – tal o sufoco dos impostos, outros podem viver sem se dar conta deles.
Entre os dois extremos, alguns vão-se safando; não muito, porque 20% da população portuguesa vive abaixo do nível de pobreza e grande parte dos restantes não está muito longe disso segundo os padrões europeus.

Não pretendo com o que acabo de expor afirmar que as empresas portuguesas pagam impostos leves, por exemplo quando comparados com outros países europeus que têm uma economia pujante e em crescimento há mais que uma década.

Pretendo sim afirmar que as empresas, em Portugal, possuem, em geral, um sistema de impostos significativamente mais leve que o relativo aos cidadãos e as probabilidades de fuga ao fisco pelas empresas é muitíssimo maior e menos perseguido pelo Estado Português que a dos cidadãos.
Pretendo afirmar que há um forte “arbítrio administrativo” (e naturalmente, pouco transparente) dentro dos sectores empresariais quanto a isenções fiscais, taxas preferenciais de impostos, perdão de dívidas fiscais, subvenções, etc.
Isso favorece a criação, preservação e desenvolvimento de fortes Corporações com o fim de manterem as “excepcionalidades” conquistadas para si e, até, as ampliarem e favorece o surgimento de múltiplas formas de corrupção.

Em conjunto, tudo isso, cria uma forte desconfiança do cidadão, e até das empresas (investidores), relativamente ao Estado. Nada lhes deve parecer transparente, as excepções são mais que muitas, o rigor da lei é para alguns e não para todos; ou seja, o Estado não lhes pode parecer ser uma “pessoa de bem”.

Estou convencido que não só os impostos sobre os cidadãos são elevadíssimos, como os impostos sobre as empresas são elevadas, independentemente de serem aplicados “igualmente” a “todos”, os respectivos regimes gerais.

Aliás, foi isso mesmo que acabou por ter conduzido à “aceitação tácita” por parte do Estado Português para se legalizar as múltiplas excepções fiscais aos respectivos regimes gerais.
Disso é também consequência, o desenvolvimento, pelo Estado Português, de uma politica discricionária de luta à evasão fiscal, na medida em que esta é essencialmente orientada contra o cidadão (porque menos organizado e mais indefeso) do que contra os interesses, organizados, das empresas e Corporações.

Os seus efeitos são contudo devastadores, quer a nível dos valores societários que desenvolvem no País e que o filósofo José Gil bem retracta, quer porque criaram distorções significativas na sociedade portuguesa; distorções que constituem gravem bloqueios ao seu desenvolvimento.

Apesar das excepções aos regimes gerais respectivos (das pessoas singulares e colectivas), o Estado Português continua a ser praticamente a única entidade nacional capaz de assumir iniciativas socialmente significativas, de origem autóctone, pois a maior parte das empresas portuguesas, mesmo as que têm um elevado volume de negócios, continuam fortemente dependentes do Estado: do seu poder administrativo–discricionário (porque permissivo à “excepção”), da protecção fiscal, dos subsídios, das encomendas públicas, etc.

Continuo convicto que o Estado Português está estruturado fiscalmente (consciente ou inconscientemente) para restringir o exercício “independente” da cidadania aos cidadãos e às empresas portuguesas, quer esmagando os primeiros com impostos quer “administrando” prémios e castigos aos segundos de acordo com um sistema fiscal pouco transparente e fortemente discricionário.

É certo que o Estado Português não é apenas uma entidade abstracta e impessoal. O Estado é dirigido e “usufruído” por uma forte e ampla “aristocracia de serviço”, pelo que o actual estado de coisas é do interesse de "muitos" – "muitos", que são mais hoje, que somos uma “democracia”, do que o eram, ontem, com o fascismo.

quinta-feira, março 17, 2005

PORTUGAL E A CRISE: PARTE III – Salários e Impostos Privilegiados

Sobre os empregados

Em nome, também, da necessidade de alguma eficiência na economia nacional e como os impostos são muito elevados; o próprio Estado teve de “acomodar” determinados estratos e interesses sociais, criando excepções ao regime fiscal geral a que estão sujeitos a maior parte dos cidadãos.

Já vimos que o Estado, como empregador, não tem de pagar 23% do salário base ilíquido à Segurança Social mas 20,6%; o que constitui uma “fuga” (legal), praticada pelo próprio Estado, ao regime geral a que a sociedade civil está subordinada.

Quanto ao pagamento do IVA, as possibilidades de fuga (ilegal) por parte dos cidadãos são ainda bastante elevadas.
A “fuga” a outros tipos de impostos sobre o consumo exige procedimentos mais elaborados, como, por exemplo, a realização deste através de “empresas”; como veremos adiante.

Relativamente aos impostos retidos na fonte (Segurança Social e IRS) as possibilidades de não pagamento são quase inexistentes para o empregado ou prestador de serviços independente, mas não para o empregador.

Contudo os valores do salário base ilíquido declarados à Segurança Social pelos empregadores e empregados podem ser inferiores aos realmente praticados, o que constitui uma “fuga” ilegal.
Por outro lado, e temos aqui uma outra “fuga” (esta legal), os empregadores oferecem múltiplas mordomias aos empregados dos escalões salariais mais altos que não são integrados no respectivo salário de base e como tal não constituem matéria colectável para o IRS e Segurança Social. São exemplo dessas mordomias as viaturas para uso pessoal e familiar, cartões de crédito, despesas de representação, combustível, telefones, férias pessoais e familiares “em serviço”, rendas de casa, salários de empregados domésticos, etc.

Naturalmente esses valores, livres de alguns impostos, aumentam significativamente os valores dos salários de base “reais” desses empregados e diminuem globalmente o peso dos impostos sobre os respectivos rendimentos.

Não tenho elementos estatísticos para ponderar o peso dessas mordomias no salário de base e, por conseguinte, no aumento que representam no salário realmente recebido pelo empregado e na correspondente diminuição do peso dos impostos pagos por estes empregados. Mas esses valores são, sem dúvida, significativos, pois as mordomias, quando existentes, não são pequenas e estão livres de muitos impostos.

Se pudéssemos ponderar o valor dessas mordomias no salário de base, penso que facilmente concluiríamos que haverá um “ponto” na escala salarial aonde o peso dos impostos sobre os salários de base realmente auferidos por alguns empregados, começa a diminuir em vez de aumentar.
Ou seja, a tão propagada justiça tributária de que paga mais quem mais ganha só o é para aqueles que não auferem um salário suficientemente alto na escala salarial!

Como veremos a situação é bem pior, pois muitas desses empregados também têm direitos de acesso à “redistribuição” da riqueza nacional promovida pelo Estado em montantes significativamente maiores do que quem paga, percentualmente, mais impostos.

Merece ainda uma reflexão particular o extracto da população portuguesa constituído pelas pessoas que integram a classe politica, o funcionalismo público, as autarquias, as empresas e instituições públicas ou subvencionadas, parcial ou integralmente, por dinheiros públicos uma vez que não só o seu número é muitíssimo elevado como representam um peso significativo no conjunto da população activa do País.

Este extracto da população portuguesa representa uma autêntica “aristocracia de serviço” na medida em que o seu nível de vida dependem exclusiva ou essencialmente do Estado ou seja da redistribuição da riqueza nacional aí concentrada através dos impostos e do exercício do seu poder discricionário.

Essa “aristocracia de serviço” conseguiu, nos últimos anos, não só assegurar uma remuneração independente do volume e qualidade de serviços por si prestados ao País como elevou os seus salários “reais” bem acima da média da sociedade civil portuguesa.
Aliás os salários dos altos funcionários públicos e para – públicos portugueses situam-se entre os mais altos da Europa comunitária.

Contudo se o poder discricionário dessa “aristocracia de serviço” lhes permitiu assegurar um aumento contínuo dos seus salários reais (inclusive em empresas publicas deficitárias) à custa do crescente aumento de impostos também possibilitou o surgimento, dentro dela, de diferenças muito elevadas.

As elites dessa “aristocracia de serviço”, socorrendo-se da necessidade de modernizar o Estado Português descobriu algo mais elaborado para aumentar as regalias dos seus “servidores”: a “privatização limitada” e a criação de Institutos Públicos.
Como digo atrás, a desculpa para tal é a “modernização” da administração pública e a elevação da eficiência introduzida por uma gestão de tipo privado.

Contudo a eficiência privada é muito mais induzida pelo risco das consequenciais ao castigo sobre a incompetência, ou seja o medo à falência, do que pelos métodos de gestão, em si.
Ora as privatizações do Estado são, em geral, “privatizações limitadas” pois estas continuam dirigidas por membros dessa aristocracia (por força das “goldenshare”) e continuam protegidas de múltiplas formas de concorrência, inclusive até pela injecção de dinheiros públicos e por privilégios suportados no poder discricionário do Estado.
Os Institutos Públicos continuam a ser subvencionados, integral ou parcialmente, pelo Estado como já o eram as Direcções Gerais que lhes deram origem.
Ou seja, uns e outros não estão sujeitos, de facto, às regras da concorrência e se eventuais falências ocorrerem isso faz-se à custa do dinheiro dos contribuintes e não do dinheiro dessa aristocracia.

A administração pública portuguesa pouco ou nada melhorou com a criação de centenas de Institutos e com muitas das “privatizações” efectuadas. Nem mesmo diminuiu o peso global das correspondentes despesas a suportar pelo Estado (pelo contrário!). Mas os seus quadros, em especial os superiores, não só auferem salários várias vezes superiores aos correspondentes nas extintas Direcções Gerais ou empresas públicas como passaram a auferir de elevadas mordomias isentas de impostos.

Parece-me não oferecer dúvidas que se todos os portugueses tivessem salários “reais” elevados (e alguns têm) seria muito bom para todo o País, e não só para os próprios.

Contudo, o que se passa, é que o Estado, por um lado impõe pesados impostos aos cidadãos de uma parte da sociedade portuguesa (70% do salário de base) e por outro lado concede isenções fiscais significativas a outra parte da sociedade.

Embora não disponha de dados estatísticos que o confirmem; pelo sistema existente e como ele funciona, não me admiraria que, em Portugal, a “classe média civil” fosse um “contribuinte líquido” (entrega, em impostos, mais ao Estado do que aquilo que recebe) enquanto que a “aristocracia de serviço” é um “receptor líquido” (recebe mais do Estado do que lhe entrega em impostos).
Isso pode significar que enquanto a sociedade civil portuguesa pretende menos impostos, a “aristocracia de serviço” estará interessada em aumentá-los não só porque sente menos os seus efeitos como é deles beneficiário líquido.

Vamos ver seguidamente como esta conclusão se reforça quando se reflecte sobre o peso dos impostos nas empresas.

terça-feira, março 01, 2005

PORTUGAL E A CRISE: Parte II – O peso dos impostos - algumas considerações

Portugal - Pobreza e marginalidade fiscal

Se associar às elevadas percentagens em impostos pagas pelos portugueses, o facto das remunerações praticadas serem muito baixas em valores absolutos (o salário mínimo nacional é cerca de três vezes inferior ao de Espanha), facilmente se conclui o quão pobre têm de ser os portugueses, inclusive as suas classes médias.

Mas o imperativo de fuga aos impostos não é só apanágio das classes médias. Os que auferem salários mais elevados também fogem aos impostos, embora em alguns destes casos a própria lei se tenha ajustado para lhes dar protecção especial.
Inclusive, quantos casos de políticos (e instituições prestigiadas!) com problemas fiscais são do conhecimento do público? Aliás, o que lhes vale, é que o crime fiscal desaparece depois de regularizada a divida e podem regressar, incólumes (!), à vida política e pública.

Por não se encarar de frente esta “realidade” fiscal, as suas consequências para a sociedade portuguesa são devastadoras porque atingem o coração de qualquer sociedade humana: os valores éticos das pessoas e das suas instituições.

Uma dessas consequências é que, na sociedade portuguesa (incluindo o seu Estado), é significativamente generalizada a assunção de comportamentos eticamente desonestos, quer na sua praxis como na forma.
Por exemplo, muita da legislação que é produzida parece que já não o é para ser aplicada, ou pior ainda, será para ser aplicada segundo critérios discricionários muito pouco transparentes aos cidadãos “comuns”!

Mas, efectivamente, se todos pagassem todos os impostos, “iguais e igualmente”, o que sobrasse, só permitiria, a muitíssimo poucos, alguma vida condigna (e mesmo muitas empresas perderiam competitividade, inclusive em sectores importantes como o bancário).

Apesar de tudo, como parte significativa da população portuguesa não consegue fugir a alguns desses impostos, o País vive muito perto de uma pobreza confrangedora aonde cerca de 20% da população vive abaixo do nível mínimo de subsistência.

A excessiva “canga” dos impostos lança-os, pois, numa contínua “marginalidade” face à lei - ao fisco. (Quem ainda não comprou um bem ou um serviço sem IVA?).

A marginalidade e as excepções fiscais legais são, em primeira instância, consequência do sistema fiscal existente (embora não seja a única causa), nomeadamente em virtude do esmagamento que provoca nos rendimentos das famílias portuguesas (e nas empresas, como veremos).

O facto do povo português (e sua sociedade) viver num estado de contínua marginalidade (ou excepção) fiscal não é, contudo, a causa da Crise que Portugal vive; como muitos podem pensar.

Os portugueses, apesar de, em média, serem muito pobres (mesmo os que se pensam ricos nunca se devem ter comparado com o que é ser-se rico, por exemplo, em Espanha ou na Grã-Bretanha), também não trabalham muito!
Mas porque iriam eles trabalhar muito se o acréscimo do seu esforço representaria 70% mais para o Estado, e apenas 30% mais para si?

Esse acréscimo de esforço em trabalho só os compensaria se assegurassem, em primeira instância, um acréscimo de fuga aos impostos? (E, frequentemente, é isso que se passa!)

Atrever-me-ia a concluir que, em Portugal, os portugueses foram “tornados” preguiçosos (e “esquemáticos”) pelas leis tributárias do País (mas não só, como veremos adiante)!

E, isso sim ajuda a compreender uma parte da causa da crise existente: o desincentivo ao trabalho - que tal sistema tributário induz.

Naturalmente, este quadro societário criou, na sociedade portuguesa, valores sociais correspondentes.

Por exemplo, os portugueses acham que não é como resultado do seu trabalho que alguém é (ou fica) rico.
Deduzem imediatamente que algo de “esquemático” esteve por detrás desse enriquecimento. Por exemplo, que as causas, desse enriquecimento, são consequência do não pagamento dos impostos devidos, de alguma redistribuição discricionária da riqueza nacional ou de subsídios europeus ou, ainda, de alguma outra protecção discricionária proporcionada pelo Estado ou por alguma Autarquia. Ou que lhe saiu a “sorte grande”.

Neste quadro social ser-se rico não é sinal de trabalho, de esforço, de espírito de sacrifício, de espírito de iniciativa, de capacidade de criação de riqueza, de capacidade de induzir desenvolvimento e emprego.
Ser-se rico não é sinal de competência e de mérito!

No quadro social existente em Portugal, ser-se rico é (quase) sinónimo de que se não é honesto ou que se andou a explorar os desgraçados dos trabalhadores. É, pois, algo que deve ser escondido.

Mesmo quando os Governantes defendem a “privatização” e a iniciativa privada (interna e externa) como fonte de fomento ao desenvolvimento do País, no fundo e sob o ponto de vista ético, isso é visto com desconfiança por toda a gente, inclusive pelos próprios Governantes.
Afirmo isso, porque todos os “sinais” dados pelo Estado, diariamente, à sociedade portuguesa, continuam a ser no sentido de considerar as iniciativas sociais significativas da sociedade civil como um “mal menor” de que se é obrigado a se socorrer o Estado, porque “não consegue ir a todas”.
Ou seja, o dito fomento junto da sociedade civil, para que esta assuma iniciativas sociais, mais ou menos significativas, não subentende uma concepção societária na qual o papel da cidadania deve passar a constituir o “centro” da sociedade portuguesa, mas apenas constitui uma “excepção” tolerada e que, como tal, tem de ser devidamente controlada e, se possível, até mantida subserviente ao Estado. Constituem um bom exemplo a generalizada subsidio - dependência (directa ou indirecta), a gestão pseudo - privada de entidades públicas e de algumas empresas privatizadas.

Parece haver uma desconfiança, contínua e intrínseca, à iniciativa privada – no fundo, ao exercício de uma cidadania independente do Estado.

Portugal conseguiu tornar desprestigiante e até desonroso a “criação de riqueza”. Conseguiu transformar este valor essencial, não só ao desenvolvimento como à vida, num anti – valor!

Estes valores (anti – valores!), dos portugueses, constituem, aliás, uma parte da caracterização que o filósofo José Gil faz da sociedade portuguesa em Portugal Hoje.

Contudo, devo insistir, esses valores (anti valores) desenvolveram-se na sociedade portuguesa como consequência de algo mais profundo.

Segundo a minha opinião estes valores foram induzidos na sociedade portuguesa, em parte, pelo sistema fiscal existente e, sem dúvida, pela concepção societária que o subentende.
Isso não ocorre só pelo sistema fiscal, em si. Por exemplo, isso não ocorre pelo facto do sistema fiscal português (central e autárquico) não constituir um verdadeiro “sistema” mas sim um amontoado (um tanto desconexo) de ferramentas para recolha de dinheiro, cujos efeitos positivos ou negativos não se conseguem ponderar, a não ser no contínuo aumento do património do Estado e no aumento do seu poder interventor (e discricionário) sobre a sociedade civil. (Por isso, pontualmente, se têm de “arranjar” excepções para este ou aquele ou para grupos sociais inteiros, como veremos!)

Segundo a minha opinião, a causa profunda para o desenvolvimento do tipo de valores (anti valores) acima descritos está na própria concepção política da sociedade portuguesa, concepção que o sistema fiscal existente subentende.

De facto Portugal optou por desenvolver uma sociedade que minora o exercício da cidadania.
O Estado é que tem de ser rico e “olhar por todos” e, portanto, o sistema fiscal existente serve, primária e simplesmente, este fim.

Mas os resultados estão aí!

Uma consequência da relação que se estabeleceu entre um Estado, que recolhe e concentra a maior parte da riqueza nacional, e o cidadão - desapossado dessa riqueza e incapaz de se identificar com esse Estado, porque impossibilitado (legalmente) de o controlar e de o responsabilizar, mesmo quando os seus actos são claramente contra os interesses nacionais.
Aliás a chamada responsabilidade política de tais actos, quando apurada, pouco ou nada significa, em Portugal, nem mesmo integra a proibição ao faltoso, do exercício futuro de quaisquer lugares políticos e públicos!
Alguns privilégios (consequência, natural, deste sistema), irregularmente atribuídos, são muitas vezes encobertos e “fixados”, legalmente, no que se denomina de direitos (!) adquiridos. Ou seja, muitas vezes nem o apuramento da responsabilização politica pode corrigir as respectivas consequências.

Como é que um cidadão empobrecido (pela própria lei do seu País), des-estimulado a trabalhar, temeroso de um Estado que não controla nem pode responsabilizar (mas que se diz no direito de lhe tirar e gastar – redistribuir - 70% do seu dinheiro), pode tomar iniciativas, pode criar “espaço” para si e para a sociedade que o acolhe e a que pertence?

Nesta linha de reflexão, desde já duvido que quaisquer medidas para aumentar ainda mais as contribuições dos cidadãos para o Estado português, resultem numa diminuição da presente Crise.
Se não forem reduzidos, globalmente, os impostos centrais (Segurança Social, IRS, IRC e IVA), mesmo o principio do utilizador - pagador e a introdução de mais taxas para pagamento de serviços do Estado só irão agravar a situação do cidadão e financiarão ainda mais gastos do Estado (crescentemente, improdutivos e ineficazes).

Ou seja, a elevação dos impostos só lançará um montante ainda maior da riqueza nacional no imenso “buraco negro”, em que se transformou o Estado português.

A resolução da Crise não passará com certeza por elevar a massa fiscal do Estado, com base no actual sistema fiscal e na filosofia societária que o sustenta.

Pelo contrário, como a tendência “natural” de qualquer sistema é auto - reproduzir-se, o dinheiro “fresco” poderá apenas vir a aumentar o “clientelismo e desperdício” e fazer esconder (e esquecer) a necessidade de reformas por mais uns tempos.
Ou seja, poderá acontecer que uma parte ainda maior da riqueza nacional, produzida anualmente pelos cidadãos portugueses, continue a ser utilizada de forma significativamente ineficaz.

Atrever-me-ia mesmo a perguntar se a luta contra a evasão fiscal, sem ser acompanhada da diminuição global de impostos, não vai também agravar a Crise.
Esse combate à evasão fiscal retirará Capital da sociedade civil que é, habitualmente, aplicado de forma mais rentável e eficaz para a sociedade portuguesa do que a que o Estado tem realizado. Desincentivará ainda mais a criação de riqueza interna e irá induzir uma crescente expatriação de Capital e das iniciativas privadas, nacionais, para o exterior do País.

Temos consciência que eventualmente será excessivo pretender fazer tantas considerações só na base da reflexão sobre o peso dos impostos sobre o salário base ilíquido e no seu valor absoluto.
Também é certo que o “atractor” fiscalidade está longe de ser único a catalizar a auto – organização e o auto - desenvolvimento de qualquer sociedade humana, mesmo que fortemente monetarizada.
A esse “atractor” associar-se-ão outros “atractores” que operam no mesmo sentido, intensificando as suas consequências, contrariando-as ou até encobrindo-as como, por exemplo, o tipo de democracia e de administração pública, existentes em Portugal.

Contudo a nossa análise não acaba aqui e iremos, infelizmente, ver como ela irá fortalecer as considerações atrás efectuadas.

Como acima dissemos, aos impostos pagos pelos cidadãos, corresponde algum retorno do Estado (das autarquias e das corporações) para benefício dos cidadãos, pelo que as nossas considerações anteriores devem ser tomadas com cuidado, em especial não se podem, linearmente, generalizar a “toda e a tudo” o que ocorre na sociedade portuguesa.
E também é certo que o peso dos impostos não se reparte proporcionalmente aos rendimentos por toda a sociedade portuguesa, pois há alguns grupos sociais que possuem protecção (legal) especial contra os impostos, não suportando um peso tão elevado como o acima calculado.

É isso que vamos procurar reflectir a seguir e quais as suas consequências.