domingo, novembro 28, 2004

Quando a Solidariedade se torna Autófago da Democracia: Parte Quatro - Portugal


Em Portugal a Solidariedade Alargada aos súbditos é muito recente apesar dos portugueses gostarem de afirmar que são uma das Nações mais antigas da Europa. Ou seja o “súbdito” português há muito pouco tempo que “passou” a ser “cidadão”.

Contudo como o “processo” foi essencialmente “importado” da Europa o resultado é que continua a haver pouca consciência social da coincidência entre os interesses das elites e dos cidadãos nacionais.
O funcionalismo público português é disso um bom exemplo: ainda hoje os funcionários públicos crêem-se dever ser “servidos” pelos cidadãos e não o contrário.
Para quem vive fora de Portugal, é contínua a admiração do nenhum ou do pouco apoio dado aos portugueses pelas respectivas representações diplomáticas ou consulares em comparação com o que recebem outros cidadãos europeus em circunstâncias idênticas, especialmente em situações delicadas que envolvem direitos de cidadania.

O conceito de cidadania e o respeito pela liberdade e igualdade para todos os portugueses sempre foi (quando legalmente instituída) essencialmente mais “formal” que efectivo.
Praticamente só pós o 25 de Abril e pós a entrada de Portugal na União, os portugueses passaram a ser considerados cidadãos de pleno direito.

Em parte, o “petróleo” provenientes das descobertas (especiarias) e posteriormente das colónias (comércio triangular, ouro, diamantes, etc.) justificou a não necessidade de trabalhar das elites portuguesas no poder.

Impressiona pois o nível de analfabetismo com que Portugal inicia o século XX e o baixíssimo número de licenciados, o baixo nível de produtividade agrícola e a sua indústria tecnologicamente pouco desenvolvida.
Portugal, até ao 25 de Abril, manteve uma elite pouco solidária com a Nação (enquanto constituída por um povo). As Corporações (de muitos poucos iguais) sempre foram subservientes ou até promíscuas com o Estado: que lhes assegurava um povo submetido, a protecção contra a livre competição interna e externa e, o mais importante, uma redistribuição privilegiada da riqueza nacional ou do “petróleo” das colónias.

Utilizando o que afirma Zakarias, as elites portuguesas, à semelhança dos actuais países do terceiro mundo, não foram obrigadas a trabalhar tanto como outras elites europeias no desenvolvimento das respectivas Nações.
De facto, Portugal nunca criou uma classe média significativa e, muito menos, forte e independente do Poder (Estado).

Assim e apesar de ser contraditório com a liberdade e a democracia, as nacionalizações de parte significativa da economia nacional, efectuadas pós 25 de Abril, ainda aumentaram mais a importância e omnipresença do Estado no País.
Deixou mesmo de praticamente ser impossível viver com alguma qualidade em Portugal fora da “protecção” do Estado.

Se antes do 25 de Abril a independência da classe média portuguesa face ao Estado era pequena depois passou a ser quase nula. Se antes do 25 de Abril a classe média portuguesa era já pequena depois passou a ser ainda mais reduzida e quase exclusivamente concentrada no funcionalismo público, nas instituições e empresas públicas.

Consequentemente a nova Constituição portuguesa foi essencialmente uma criação voluntarista das elites no Poder e tão afastada da realidade nacional que tem vindo a ter de ser contínua e sucessivamente alterada.
Naturalmente e como consequência, a concepção republicana da organização do Estado não está aí plenamente reflectiva.

O Presidente da República, eleito directamente pelos cidadãos, não tem poder efectivo algum, assemelhando-se muito as suas funções às dos actuais monarcas europeus.

O Poder Legislativo, que deveria marcar um Sistema de Poder predominantemente parlamentar, está de facto fortemente dependente do Executivo, cujo Chefe é escolhido entre a maioria partidária no Parlamento e não por voto popular directo.
Os deputados dependem muito mais do Chefe do respectivo partido que dos eleitores, pois não respondem perante estes mas sim perante o Chefe partidário (que os pode integrar ou não nas listas eleitorais, em especial, em posições elegíveis).
A prática da “disciplina de voto” torna esta dependência ainda mais acentuada, substituindo a consciência de cada deputado pela consciência do Chefe do partido.
Por exemplo um das funções do Parlamento, a fiscalização das actividades do Executivo, nunca se consegue realizar com eficácia, pois nenhum inquérito parlamentar chega a resultado diferente que não seja apoiar o Executivo.
A agravar a situação, o poder legislativo não é exclusivo do Parlamento uma vez que o próprio Executivo tem também poder legislativo, mesmo que limitado.

De facto o Executivo acaba por não ter “obrigação” de governar na base das Leis do País (claro que é abusiva a conclusão e respectiva generalização) mas das leis (novas ou alteradas) que faz aprovar pela sua maioria parlamentar, maioria essa que é dependente desse Executivo.
Uma das consequências mais evidentes é que a alternância politica do Executivo (ou até só do respectivo responsável) provoca alterações contínuas nas políticas governativas. O País cai continuamente numa governação quase casuística, frequentemente errática e praticamente marcada pelo calendário eleitoral – fonte única de preservação do Poder.

Por outro lado o Poder Judicial não só também não é suficientemente independente do Executivo como lhe falta “poder” efectivo.
À própria concepção do sistema judicial português parece faltar-lhe uma estrutura que lhe confira um Poder efectivo, intrínseco ao próprio sistema judicial, o que se manifesta por exemplo que tenha de ser um Sindicato, o Sindicato de Juízes, a defender junto dos cidadãos as posições e comportamentos dos Juízes relativas ao exercício das suas próprias funções como juízes. No mínimo tal comportamento transmite a ideia de um sistema judicial entregue às mãos de uma Corporação profissional e portanto de cariz “privada” e não de um Sistema Judicial soberano, auto responsável e directamente responsável perante os cidadãos.
Por outro lado o seu funcionamento é moroso e lento e, sendo caro para a média dos portugueses, o recurso à justiça torna-se impossível e ineficaz para a maioria dos cidadãos.

A nomeação de juízes pelo Executivo para funções fora do sistema judicial, em comissão temporária de serviço, ainda o torna mais dependente, na medida em que isso pode representar uma eventual troca de favores.
Também a existência de Tribunais sem poderes realmente judiciais e executórios, como por exemplo o Tribunal de Contas dá a entender que não se tem um concepção precisa do que é um Tribunal. Por exemplo não se entende como o Tribunal de Contas desaprova as contas de uma autarquia por não cumprimento da lei e isso não é imediatamente transformado em acções sancionatórias, inclusive a convocação de eleições antecipadas, uma vez que se está perante uma avaliação e decisão de um “Tribunal”.

A nível autárquico a confusão e a promiscuidade é quase total. Inclusive o próprio Executivo Autárquico integra todos os membros dos partidos presentes desde que detenham uma determinada percentagem de votos nas respectivas eleições. Nenhum mecanismo de auto controlo e limitação de poder é susceptível de operar dentro do sistema que constitui o actual sistema de poder autárquico.

Ou seja, na prática o poder do Estado acaba por ficar excessivamente (senão quase exclusivamente) concentrado no Executivo, porquanto não se lhe opõem contra poderes suficientemente independentes e eficazes quer a nível de órgãos de Soberania (Presidência da República, Parlamento e Tribunais) quer da Sociedade Civil aonde não há classe média suficientemente alargada, rica e independente do Estado.

A tão preciosa Separação de Poderes e o exercício de Contra Poder existente na concepção republicana da organização do Estado, realiza-se de forma muito esbatida em Portugal.

Isso pode vir a representar um risco sério à Democracia.

Apesar de tudo Portugal conseguiu desenvolver-se significativamente desde a sua entrada na União, a cidadania tomou forma e foi alargada a solidariedade efectiva a todos os cidadãos.
Contudo não devemos lançar areia para os nossos próprios olhos, foi a entrada de Portugal na União que proporcionou a melhoria significativa do nível de vida de todos os Portugueses e foi possível (com a imensa ajuda europeia) sustentar essa Solidariedade Social Alargada agora a todos.

Mas, e isso é muitíssimo importante, o trabalho das elites para se atingir esse fim, a organização dos cidadãos para se alcançar a produção e produtividade que sustentam essa solidariedade, não foi de facto ainda realizado pelas elites portugueses. Foi-o realizado pelas elites (e respectivos cidadãos) dos países europeus desenvolvidos… de onde vem a ajuda (o dinheiro) e demais competências traduzidas pelo investimento estrangeiro e “imposições” organizativas (inclusive administrativas) ao nosso Estado e à nossa sociedade.

No entanto isso tem um senão que pode ficar muito caro a Portugal; como essa ajuda passa através do Estado, a importância e papel deste na sociedade portuguesa tem continuado a aumentar em vez de diminuir. A omnipresença do Estado na sociedade portuguesa tem continuado a ser crescente.

A classe média portuguesa continua tão ou mais dependente do Estado que antes, continua pobre e pequena apesar das desnacionalizações que têm vindo a ser feitas (aliás com efeitos fortemente limitadas em virtude do poder que o Estado preserva nessas empresas).
Cerca de 2 milhões de portugueses são pobres, 20% da população.

Naturalmente que neste quadro a Competição para o domínio do Estado (poder de decisão) e do acesso à riqueza que aí é concentrada através dos Impostos e à respectiva redistribuição, constitui a actividade privilegiada das elites, mesmo quando novas.

Ou seja Portugal, que entra tardiamente na Solidariedade Alargada ao seu povo (possível com ajuda externa, quer em dinheiro como em organização), está em risco de entrar prematuramente numa fase Auto – Fagócita da sua Democracia porque não conseguiu claramente atingir ainda uma organização (politica, económica e social) que lhe proporcione auto sustentabilidade.

Por exemplo, em Portugal, os Impostos representam, ao longo da vida do cidadão, em média cerca de 65 a 70% do que produz ou dos respectivos salários (se não houver fuga aos impostos): impostos sobre os rendimentos, IVA, IRC, imposto automóvel, imposto sobre combustíveis, imposto do tabaco, impostos de rádio, imposto autárquico, portagens quando duplicadas, imposto sobre o património quando se morre, etc. A isso acrescenta-se os “impostos corporativos” ou seja os resultantes do pagamento de bens e serviços privados (melhor seria dizer: para – estatais ou para - privados) sobrevalorizados por serem protegidos pelo Estado como por exemplo medicamentos, transportes, empresas “falidas” e subvencionadas pelos impostos, etc.
E não incluímos nessa percentagem os pagamentos por “baixo da mesa” necessário para se aceder a muitos serviços públicos.
É evidente que o que sobra ao Cidadão português, da classe média, para se alimentar, vestir, educar, etc. a si e á sua família, manter dignidade e independência, é “miserável” não só proporcionalmente ao que produz e ganha (30 a 35 euros por cada 100 euros) como porque a sua produtividade torna-se (ou nunca deixou de ser) baixa “nessa” sua sociedade profundamente ineficaz.

O cidadão português fica apenas com 30 a 35% do que produz a que se associa um retorno do Estado muitíssimo pequeno e que se traduz infelizmente na ineficácia quase generalizada da prestação dos serviços públicos (que ainda tem frequentemente de pagar à parte pelo sistema da corrupção), uma assistência médica deficiente (e discriminatória a favor do funcionário público), uma educação estatal obrigatória que transforma “analfabetos em iletrados” se os pais não pagarem explicações, um sistema de reformas discriminatórias por privilegiar os funcionários públicos, os políticos, etc.

Portugal não tem Classe Média forte e independente, nem a pode criar nessas condições.
A falta ou ineficaz existência de Contra Poder ou de equilíbrio de Poder, tão necessário a uma sociedade democrática, poderia colocar em risco a Democracia em Portugal, não fosse Portugal estar “ancorado” à Europa.

Talvez a abertura continuada de Portugal à União traga para Portugal a forte classe média dos países ocidentais e sejam estes finalmente a fazer o contra poder que o Estado precisa de ter e que é garante do desenvolvimento, da igualdade e de uma Solidariedade Alargada eficaz.
Contudo há que recear a carácter útil que essas relações podem assumir. E ela aí está (a relação útil) em vários domínios porquanto os investimentos estrangeiros entram a troco de vantagens fiscais (e outras excepções legais) a que os portugueses não têm direito no seu próprio Pais.

É pois constrangedor ouvir os intelectuais portugueses repetir ad infinitum (semana após semana, ano após ano) o que vai mal no País e ver que nem um “passo” consegue ser tomado no sentido da correcção!
É que de facto as causas são mais profundas para que os respectivos problemas possam ser revolvidos como reacção linear e directa às causas imediatas que são apontadas. Não se trata de tomar medidas “voluntaristas” num ou noutro sentido pela quase única entidade com poder efectivo no país: o Executivo. Trata-se em assegurar o funcionamento de um sistema que equilibre poderes, consiga responsabilizá-los e multiplique a iniciativa social.

É essencial repensar o sistema social de poder na sociedade, é essencial que o Sistema seja reajustado de modo a criar-se mecanismos que assegurem a sua própria auto correcção de forma adequada ao fim em vista: a democracia – se esse for o objectivo.

No fundo é essencial que a concepção republicana da organização da sociedade seja criteriosamente implementada. Ou que as aspirações dos cidadãos portugueses proporcionadas pelo 25 de Abril, sejam levadas plenamente a cabo: a implementação de uma República Democrática.

segunda-feira, novembro 15, 2004

Quando a Solidariedade se torna Autófago da Democracia: Parte três - Solidariedade dês estruturante

A redistribuição do conteúdo da “manjedoura” alimentada pelos Impostos (em espécie, trabalho ou dinheiro) constituiu objectivo central para a tomada do Poder e constitui, ainda hoje, uma importante fonte de subsistência e poder das elites.
Nas sociedades democráticas a legitimidade dos impostos é-lhe conferida pela governação ao serviço de todos os cidadãos, nomeadamente pela solidariedade alargada à Nação, que deve ser promovida.
A solidariedade, que representa um alargamento da primária solidariedade Familiar a colectivos amplos como a Nação ou mesmo o planeta, não pode evitar contudo a competição (inter grupos), inclusive no sentido da colheita de uma maior fatia nessa redistribuição. Aliás nem é mesmo desejável que a solidariedade alargada anule a competição inter grupos (se é que de algum modo isso fosse possível!).
No entanto o desenvolvimento dessa solidariedade tem os seus perigos, nomeadamente se não for assegurado um adequado equilíbrio de interesses.

Ora a única maneira, relativamente estável, disso ser assegurado é um equilíbrio de poderes: dentro do próprio Estado e entre este a sociedade civil.
A limitação do poder dos reis e a institucionalizado da República, com o respectivo equilíbrio de poder entre executivo, legislativo e judicial, foram sem dúvida passos determinantes nesse caminho: no aumento do poder da sociedade civil face ao Estado.
Ora isso exige, pelo menos, uma classe média rica, independente do Estado e capaz de se fazer ouvir.

Ora o que se pode passar é que a Solidariedade pode estender-se de tal modo que o custo em impostos pese excessivamente ao cidadão e consequentemente este deixe de poder manter a força e independência necessária para contra balançar o Estado. E o Estado passa a estar omnipresente na vida da Nação e dos cidadãos.

Outro aspecto é que o alargamento da Solidariedade e a correspondente justificação para uma cada vez maior intervenção sobre a sociedade conduz impreterivelmente à elevação de impostos e à crescente ineficácia do Estado.
Quantos euros são precisos injectar no Estado para se receber um euro da dita “solidariedade”?
Qual a eficiência do investimento do Estado face à média alcançada por correspondente investimento privado? E quando é que este investimento não passa a ser uma forma encoberta de redistribuição da riqueza nacional?

Também os efeitos no comportamento social dos cidadãos conduzem frequentemente à desresponsabilização e desincentivo à sua própria iniciativa.
O Estado passa a ter de “resolver tudo”, é destruído o espírito de iniciativa dos cidadãos inclusive de solidariedade para com o próximo (é tudo responsabilidade do Estado, e de facto este fica-lhe com “todo” o dinheiro!), o bom negócio passa a ser obter colocação como funcionário público, politico, etc. ou é ser subvencionado ou cliente do Estado (de facto, o grande patrão), etc.

A concentração de elevados meios financeiros nas mãos do Estado versus uma sociedade civil pobre ou incapaz de contra poder aumenta a possibilidade de corrupção e o apetite de domínio e partilha do Poder entre alguns (os iguais).

Muitos dos cidadãos mais competentes, com espírito de iniciativa e desejo de independência (e de não se deixarem espoliar) abandonam o País.

Se a isso se acrescentar um Estado aonde os poderes executivo, judicial e legislativo não se conseguem contra balançar, estar-se-á a um passo da “Democracia” se transformar em Demagogia.

O desejo de igualdade que conduziu à Democracia e correspondente alargamento da solidariedade induz a desigualdade. De facto com consequências muitíssimo semelhantes ao que se passou nos países do Leste Europeu, sob o comunismo.

Ou seja a solidariedade alargada pode tornar-se autófago da Democracia.
O contínuo alargamento da igualdade (inter grupo) começa a retroceder assim como a solidariedade efectiva e a competição (entre grupos) concentra-se no domínio do Estado e no acesso às suas benesses. A própria competição, que deveria ser positiva à sociedade, passa a ser negativa.
Em nome da solidariedade pode pois diminuir-se seriamente o contra poder dos cidadãos (os outros) e induzir (mesmo que inconscientemente) o direito (legalizado) à exploração (encoberta) pelas elites detentoras do poder do Estado.

No entanto concluir que é bom para todos, cidadãos e elites, que os cidadãos devem ter poder para contra balançar o Estado não é uma verdade com interesse para muitos. E muito menos que esse poder só existe se parte significativa da riqueza nacional ficar nas mãos de quem a cria (dos cidadãos e respectivas associações) e não do Estado (e das elites que o controlam).

Ou seja, mesmo havendo consciência da importância em limitar seriamente o poder do Estado face ao cidadão, é muito difícil fazê-lo porque é dominante a tradição do “predador – paizinho” e do “espoliado – filho” (a chave e a fechadura que se auto construíram, uma à outra).
Apesar das Igrejas Cristãs terem tido um papel central no alargamento da solidariedade humana, a Igreja Católica (de certo modo em oposição às igrejas protestantes) tem sido bastante favorável ao conceito de cidadão “coitadinho” ou seja à preservação da relação “pai – filho” que encobre, infelizmente, muitas vezes uma relação “predador - espoliado”.

De facto só a sociedade americana tem a tradição (muito curta, aliás) de que ninguém tem de ser pai ou filho. Todos os cidadãos têm de tomar conta de si como adultos e iguais que são.
E por isso também, o poder do Estado tem de ser limitado. O sistema de contra poderes existente nos EUA visa esse objectivo e a Democracia aberta, iliberal, foi vista como “tendente” à Demagogia pelos “fundadores” do Estado americano.

quarta-feira, novembro 03, 2004

Quando a Solidariedade se torna Autófago da Democracia: Parte Dois - O alargamento da igualdade e o direito à cidadania

Se a História nos mostra o “desenvolvimento humano” associado ao alargamento contínuo do intra grupo solidário (número de iguais – cidadãos, nas democracias) e à liberdade individual e de competição entre grupos é porque a respectiva sociedade, como um todo, alcançou níveis de eficiência social maiores que as sociedades humanas que não seguiram o mesmo caminho.

Contudo a “democratização”, como sinónimo de eleição do governo pelo povo, não tem conduzido, na maior parte das recém democracias, aos modelos sociais dos países desenvolvidos do ocidente. Em alguns desses países o sistema “democrático” apenas acabou por legalizar “ditaduras” (incompetentes e ou corruptas) eleição após eleição. Ou seja, nesses casos, a “democracia” conduziu à demagogia como era aliás receio dos “fundadores” dos EUA.

Mas mesmo para os países desenvolvidos do ocidente começam a aparecer alertas constantes dos perigos que estas sociedades estão a enfrentar em virtude do que parece ser uma clara diminuição da taxa de aumento da sua eficiência. A Europa está com problemas sérios (e a “afastar-se” cada vez mais dos EUA) e mesmo os EUA começam a sentir necessidade de reequacionar algumas das suas políticas internas.
É certo que estas sociedades ainda não se debatem com concorrências (competição) suficientemente fortes para as colocar em causa, contudo não se pode deixar de ter presente que muitas civilizações anteriores desapareceram não por causa da competição externa mas porque se foram progressivamente auto – destruindo.

Muitas das reflexões sobre o futuro das sociedades desenvolvidas começaram, de forma indirecta, quando se pretendeu compreender o “bloqueio” dos países do terceiro mundo ao desenvolvimento. Também as teses que sustentaram as teorias e a experiência comunista são profundamente enriquecedoras na compreensão da organização e funcionamento das sociedades humanas modernas embora pense que não têm merecido o necessário estudo, em especial após a auto – destruição dessas sociedades.

Farred Zakaria em “O Futuro da Liberdade” afirma “que um país que entabule a sua transição para a Democracia quando atinja um PIB per capita entre 3000 e 6000 dólares terá sucesso”.
Segundo este investigador, a excepção a esta “praxis”, acontece se o país tiver uma “riqueza natural” (como o petróleo) que proporcione um elevado rendimento às elites (os iguais) sem que estas estejam obrigadas para tal a organizar e estruturar adequadamente a respectiva sociedade. Ou seja as elites podem viver do “petróleo” e como tal não têm necessidade de “explorar” o respectivo povo (que pouco produz).
Deste modo as elites não sentem necessidade de desenvolver e estruturar relações simbióticas (positivas) entre elites e povo de modo a aumentar a produção (riqueza) nacional.

Talvez seja essa a causa “profunda” porque, para além de enriquecerem as elites locais, a “ajuda” externa dos países desenvolvidos aos sub desenvolvidos não esteja a resolver minimamente os problemas com que esses países se debatem. A “ajuda” (associada ao simples perdão das dividas) assume de certo modo o papel de “petróleo”: as elites enriquecem (ou vivem bem) com essa “ajuda” sem precisar de “trabalhar”.
Ou seja as relações simbióticas que se deveriam desenvolver entre elites e povo não se constituem para além de algum carácter predatório ou “útil” que assumam.

Segundo Zakaria para se alcançar o PIB per capita, acima referido, as respectivas elites foram obrigadas a criar condições (organização e estruturação adequadas) que possibilitam aos respectivos cidadãos conseguirem atingir os níveis correspondentes de produção e de produtividade.
Essas condições são as que conduziram as sociedades ocidentais ao nível da eficiência correspondente à organização politica e social que se denomina de Democracia.

Historicamente, essas condições (para a Democracia) têm de ser procuradas na cultura anglo-saxónica pois foi aí que se iniciou parte significativa de todo este processo. A limitação do poder do Estado (primeiramente do Rei) e consequentemente do alargamento do número de iguais é sem dúvida um aspecto importante.
Consequentemente o conceito de liberdade e de igualdade (favorecido pelo modelo de justiça anglo-saxónico, muito transparente e auto – responsabilizante) e o conceito de Nação surgem historicamente muito cedo na Inglaterra. Certamente, não são conceitos universais a todos os cidadãos, mas o número dos que gozavam dele era já muito elevado e isso impunha limitações ao Poder, nomeadamente no estabelecimento e cobrança de impostos.
Isso permitiu, cedo, criar-se uma forte classe média e deu aos cidadãos iniciativa e capacidade financeira (poder) para uma cada vez maior e mais independente participação na sociedade. É interessante notar que, enquanto no Continente Europeu o Estado assumia (e assume) com frequência a iniciativa em muitos domínios económicos e sociais, na Grã-Bretanha eram (e são) os cidadãos a fazê-lo.

Segundo Zakaria, o sucesso da Democracia exige pois que o rendimento por cidadão seja de tal modo elevado que ele consiga assegurar, com alguma eficácia, um contra poder importante ao Estado, inclusive através das suas associações. Ou seja, a Democracia só se mantém e se auto – sustenta, se o País tiver uma classe média suficientemente forte, alargada e independente.

Parece pois que é importante à Democracia que o cidadão e as suas instituições privadas sejam a primeira figura da sociedade e não o Estado, cujo comportamento se pode tornar facilmente instável e potencialmente predatório se não contrabalançado por aqueles.

Talvez não tenha sido ocasional que os EUA sem tradições, especialmente exploratórias, herdeiros de um sistema de Estado limitado e de um sistema de justiça transparente e auto responsabilizante (o Inglês) e herdeiros dos ideais da Revolução Francesa (pelo menos formalmente, esmagada na Europa!) tenha sido o primeiro exemplo e representante da moderna forma do ideal democrático e do modo como se estruturou o Poder de Estado face à cidadania (ao povo).
Aliás, apenas no fim da segunda guerra mundial uma parte da Europa Continental se encaminhou decididamente para a Democracia. Antes disso grande parte dos países estavam muito próximos ou eram mesmo fascistas, pró fascistas ou “ambíguos” face ao fascismo (nem a Inglaterra se pode afastar dessas simpatias!) e mesmo depois da guerra parte significativa deles abraçou uma nova forma de ditadura: o comunismo.

De facto a probabilidade de implementação do contrário é que seria de admirar, pois o peso da tradição exploratória (consciente ou inconsciente… “de bem intencionados está o inferno cheio”) é muito elevado e constituiu-se historicamente como a estruturante para a “civilização” humana!

É a velha Europa!
De facto não o é. É sim: o velho Mundo.
Contudo talvez não seja tão “velho” assim, pois nada nem ninguém assegura que o ideal democrático “vingue” no planeta.
Esse livro de Zakarias é um “grito” de aviso, inclusive aos países desenvolvidos do ocidente.

Uma classe média forte e alargada só se constitui se o cidadão poder atingir elevados graus de produtividade (o que exige nomeadamente uma elevada eficiência no papel do Estado) e se o cidadão não for espoliado pelas elites (de poucos iguais) da riqueza que produz, nomeadamente através de Impostos excessivos.

O poder do cidadão face ao Estado (às elites) é pois assegurado principalmente pelo que pode reter para si da “riqueza” que cria e acessoriamente (se não for elite) do direito que lhe cabe na redistribuição efectuada pelo Estado (de forma directa ou indirecta), se esse direito não depender do poder discricionário do Estado. Caso contrário poderá converter-se numa forma de tornar o cidadão ainda mais dependente (e subserviente) do Estado (das elites que detêm o respectivo poder).

É evidente que há sempre possibilidade (mesmo que teórica) de excepção. Por exemplo se houver uma elevada coincidência (melhor seria dizer: fusão) de interesses entre o Estado e os respectivos cidadãos e aquele os representasse plenamente. Neste caso a riqueza criada por cada cidadão até poderia ir toda para o Estado que depois a redistribuiria pelos cidadãos segundo as suas possibilidades … isso pretendia Marx na sociedade socialista e foi experimentado nos países do leste europeu com as consequências que se conhecem.
Não chegando à utopia de Marx, é possível admitir que essa coincidência ou fusão de interesses Estado/cidadão possa ocorrer em sociedades etnicamente (portanto culturalmente) muito uniformes e com fortes tradições de valorização social do trabalho e de entre ajuda (motivados por exemplo pelo rigor ou perigosidade do meio envolvente), como por exemplo os países nórdicos da Europa.

Nas sociedades desenvolvidas modernas as relações sociais são seguramente muito complexas, mas o “cabouco” biológico estruturante, da solidariedade e da competição, está lá.
Nomeadamente a tradição exploratória (dos outros pelos iguais) pode encobrir-se na solidariedade social alargada promovida pelo Estado. Neste caso a solidariedade passa a estruturar a sociedade negativamente.