quarta-feira, novembro 03, 2004

Quando a Solidariedade se torna Autófago da Democracia: Parte Dois - O alargamento da igualdade e o direito à cidadania

Se a História nos mostra o “desenvolvimento humano” associado ao alargamento contínuo do intra grupo solidário (número de iguais – cidadãos, nas democracias) e à liberdade individual e de competição entre grupos é porque a respectiva sociedade, como um todo, alcançou níveis de eficiência social maiores que as sociedades humanas que não seguiram o mesmo caminho.

Contudo a “democratização”, como sinónimo de eleição do governo pelo povo, não tem conduzido, na maior parte das recém democracias, aos modelos sociais dos países desenvolvidos do ocidente. Em alguns desses países o sistema “democrático” apenas acabou por legalizar “ditaduras” (incompetentes e ou corruptas) eleição após eleição. Ou seja, nesses casos, a “democracia” conduziu à demagogia como era aliás receio dos “fundadores” dos EUA.

Mas mesmo para os países desenvolvidos do ocidente começam a aparecer alertas constantes dos perigos que estas sociedades estão a enfrentar em virtude do que parece ser uma clara diminuição da taxa de aumento da sua eficiência. A Europa está com problemas sérios (e a “afastar-se” cada vez mais dos EUA) e mesmo os EUA começam a sentir necessidade de reequacionar algumas das suas políticas internas.
É certo que estas sociedades ainda não se debatem com concorrências (competição) suficientemente fortes para as colocar em causa, contudo não se pode deixar de ter presente que muitas civilizações anteriores desapareceram não por causa da competição externa mas porque se foram progressivamente auto – destruindo.

Muitas das reflexões sobre o futuro das sociedades desenvolvidas começaram, de forma indirecta, quando se pretendeu compreender o “bloqueio” dos países do terceiro mundo ao desenvolvimento. Também as teses que sustentaram as teorias e a experiência comunista são profundamente enriquecedoras na compreensão da organização e funcionamento das sociedades humanas modernas embora pense que não têm merecido o necessário estudo, em especial após a auto – destruição dessas sociedades.

Farred Zakaria em “O Futuro da Liberdade” afirma “que um país que entabule a sua transição para a Democracia quando atinja um PIB per capita entre 3000 e 6000 dólares terá sucesso”.
Segundo este investigador, a excepção a esta “praxis”, acontece se o país tiver uma “riqueza natural” (como o petróleo) que proporcione um elevado rendimento às elites (os iguais) sem que estas estejam obrigadas para tal a organizar e estruturar adequadamente a respectiva sociedade. Ou seja as elites podem viver do “petróleo” e como tal não têm necessidade de “explorar” o respectivo povo (que pouco produz).
Deste modo as elites não sentem necessidade de desenvolver e estruturar relações simbióticas (positivas) entre elites e povo de modo a aumentar a produção (riqueza) nacional.

Talvez seja essa a causa “profunda” porque, para além de enriquecerem as elites locais, a “ajuda” externa dos países desenvolvidos aos sub desenvolvidos não esteja a resolver minimamente os problemas com que esses países se debatem. A “ajuda” (associada ao simples perdão das dividas) assume de certo modo o papel de “petróleo”: as elites enriquecem (ou vivem bem) com essa “ajuda” sem precisar de “trabalhar”.
Ou seja as relações simbióticas que se deveriam desenvolver entre elites e povo não se constituem para além de algum carácter predatório ou “útil” que assumam.

Segundo Zakaria para se alcançar o PIB per capita, acima referido, as respectivas elites foram obrigadas a criar condições (organização e estruturação adequadas) que possibilitam aos respectivos cidadãos conseguirem atingir os níveis correspondentes de produção e de produtividade.
Essas condições são as que conduziram as sociedades ocidentais ao nível da eficiência correspondente à organização politica e social que se denomina de Democracia.

Historicamente, essas condições (para a Democracia) têm de ser procuradas na cultura anglo-saxónica pois foi aí que se iniciou parte significativa de todo este processo. A limitação do poder do Estado (primeiramente do Rei) e consequentemente do alargamento do número de iguais é sem dúvida um aspecto importante.
Consequentemente o conceito de liberdade e de igualdade (favorecido pelo modelo de justiça anglo-saxónico, muito transparente e auto – responsabilizante) e o conceito de Nação surgem historicamente muito cedo na Inglaterra. Certamente, não são conceitos universais a todos os cidadãos, mas o número dos que gozavam dele era já muito elevado e isso impunha limitações ao Poder, nomeadamente no estabelecimento e cobrança de impostos.
Isso permitiu, cedo, criar-se uma forte classe média e deu aos cidadãos iniciativa e capacidade financeira (poder) para uma cada vez maior e mais independente participação na sociedade. É interessante notar que, enquanto no Continente Europeu o Estado assumia (e assume) com frequência a iniciativa em muitos domínios económicos e sociais, na Grã-Bretanha eram (e são) os cidadãos a fazê-lo.

Segundo Zakaria, o sucesso da Democracia exige pois que o rendimento por cidadão seja de tal modo elevado que ele consiga assegurar, com alguma eficácia, um contra poder importante ao Estado, inclusive através das suas associações. Ou seja, a Democracia só se mantém e se auto – sustenta, se o País tiver uma classe média suficientemente forte, alargada e independente.

Parece pois que é importante à Democracia que o cidadão e as suas instituições privadas sejam a primeira figura da sociedade e não o Estado, cujo comportamento se pode tornar facilmente instável e potencialmente predatório se não contrabalançado por aqueles.

Talvez não tenha sido ocasional que os EUA sem tradições, especialmente exploratórias, herdeiros de um sistema de Estado limitado e de um sistema de justiça transparente e auto responsabilizante (o Inglês) e herdeiros dos ideais da Revolução Francesa (pelo menos formalmente, esmagada na Europa!) tenha sido o primeiro exemplo e representante da moderna forma do ideal democrático e do modo como se estruturou o Poder de Estado face à cidadania (ao povo).
Aliás, apenas no fim da segunda guerra mundial uma parte da Europa Continental se encaminhou decididamente para a Democracia. Antes disso grande parte dos países estavam muito próximos ou eram mesmo fascistas, pró fascistas ou “ambíguos” face ao fascismo (nem a Inglaterra se pode afastar dessas simpatias!) e mesmo depois da guerra parte significativa deles abraçou uma nova forma de ditadura: o comunismo.

De facto a probabilidade de implementação do contrário é que seria de admirar, pois o peso da tradição exploratória (consciente ou inconsciente… “de bem intencionados está o inferno cheio”) é muito elevado e constituiu-se historicamente como a estruturante para a “civilização” humana!

É a velha Europa!
De facto não o é. É sim: o velho Mundo.
Contudo talvez não seja tão “velho” assim, pois nada nem ninguém assegura que o ideal democrático “vingue” no planeta.
Esse livro de Zakarias é um “grito” de aviso, inclusive aos países desenvolvidos do ocidente.

Uma classe média forte e alargada só se constitui se o cidadão poder atingir elevados graus de produtividade (o que exige nomeadamente uma elevada eficiência no papel do Estado) e se o cidadão não for espoliado pelas elites (de poucos iguais) da riqueza que produz, nomeadamente através de Impostos excessivos.

O poder do cidadão face ao Estado (às elites) é pois assegurado principalmente pelo que pode reter para si da “riqueza” que cria e acessoriamente (se não for elite) do direito que lhe cabe na redistribuição efectuada pelo Estado (de forma directa ou indirecta), se esse direito não depender do poder discricionário do Estado. Caso contrário poderá converter-se numa forma de tornar o cidadão ainda mais dependente (e subserviente) do Estado (das elites que detêm o respectivo poder).

É evidente que há sempre possibilidade (mesmo que teórica) de excepção. Por exemplo se houver uma elevada coincidência (melhor seria dizer: fusão) de interesses entre o Estado e os respectivos cidadãos e aquele os representasse plenamente. Neste caso a riqueza criada por cada cidadão até poderia ir toda para o Estado que depois a redistribuiria pelos cidadãos segundo as suas possibilidades … isso pretendia Marx na sociedade socialista e foi experimentado nos países do leste europeu com as consequências que se conhecem.
Não chegando à utopia de Marx, é possível admitir que essa coincidência ou fusão de interesses Estado/cidadão possa ocorrer em sociedades etnicamente (portanto culturalmente) muito uniformes e com fortes tradições de valorização social do trabalho e de entre ajuda (motivados por exemplo pelo rigor ou perigosidade do meio envolvente), como por exemplo os países nórdicos da Europa.

Nas sociedades desenvolvidas modernas as relações sociais são seguramente muito complexas, mas o “cabouco” biológico estruturante, da solidariedade e da competição, está lá.
Nomeadamente a tradição exploratória (dos outros pelos iguais) pode encobrir-se na solidariedade social alargada promovida pelo Estado. Neste caso a solidariedade passa a estruturar a sociedade negativamente.

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