domingo, novembro 28, 2004

Quando a Solidariedade se torna Autófago da Democracia: Parte Quatro - Portugal


Em Portugal a Solidariedade Alargada aos súbditos é muito recente apesar dos portugueses gostarem de afirmar que são uma das Nações mais antigas da Europa. Ou seja o “súbdito” português há muito pouco tempo que “passou” a ser “cidadão”.

Contudo como o “processo” foi essencialmente “importado” da Europa o resultado é que continua a haver pouca consciência social da coincidência entre os interesses das elites e dos cidadãos nacionais.
O funcionalismo público português é disso um bom exemplo: ainda hoje os funcionários públicos crêem-se dever ser “servidos” pelos cidadãos e não o contrário.
Para quem vive fora de Portugal, é contínua a admiração do nenhum ou do pouco apoio dado aos portugueses pelas respectivas representações diplomáticas ou consulares em comparação com o que recebem outros cidadãos europeus em circunstâncias idênticas, especialmente em situações delicadas que envolvem direitos de cidadania.

O conceito de cidadania e o respeito pela liberdade e igualdade para todos os portugueses sempre foi (quando legalmente instituída) essencialmente mais “formal” que efectivo.
Praticamente só pós o 25 de Abril e pós a entrada de Portugal na União, os portugueses passaram a ser considerados cidadãos de pleno direito.

Em parte, o “petróleo” provenientes das descobertas (especiarias) e posteriormente das colónias (comércio triangular, ouro, diamantes, etc.) justificou a não necessidade de trabalhar das elites portuguesas no poder.

Impressiona pois o nível de analfabetismo com que Portugal inicia o século XX e o baixíssimo número de licenciados, o baixo nível de produtividade agrícola e a sua indústria tecnologicamente pouco desenvolvida.
Portugal, até ao 25 de Abril, manteve uma elite pouco solidária com a Nação (enquanto constituída por um povo). As Corporações (de muitos poucos iguais) sempre foram subservientes ou até promíscuas com o Estado: que lhes assegurava um povo submetido, a protecção contra a livre competição interna e externa e, o mais importante, uma redistribuição privilegiada da riqueza nacional ou do “petróleo” das colónias.

Utilizando o que afirma Zakarias, as elites portuguesas, à semelhança dos actuais países do terceiro mundo, não foram obrigadas a trabalhar tanto como outras elites europeias no desenvolvimento das respectivas Nações.
De facto, Portugal nunca criou uma classe média significativa e, muito menos, forte e independente do Poder (Estado).

Assim e apesar de ser contraditório com a liberdade e a democracia, as nacionalizações de parte significativa da economia nacional, efectuadas pós 25 de Abril, ainda aumentaram mais a importância e omnipresença do Estado no País.
Deixou mesmo de praticamente ser impossível viver com alguma qualidade em Portugal fora da “protecção” do Estado.

Se antes do 25 de Abril a independência da classe média portuguesa face ao Estado era pequena depois passou a ser quase nula. Se antes do 25 de Abril a classe média portuguesa era já pequena depois passou a ser ainda mais reduzida e quase exclusivamente concentrada no funcionalismo público, nas instituições e empresas públicas.

Consequentemente a nova Constituição portuguesa foi essencialmente uma criação voluntarista das elites no Poder e tão afastada da realidade nacional que tem vindo a ter de ser contínua e sucessivamente alterada.
Naturalmente e como consequência, a concepção republicana da organização do Estado não está aí plenamente reflectiva.

O Presidente da República, eleito directamente pelos cidadãos, não tem poder efectivo algum, assemelhando-se muito as suas funções às dos actuais monarcas europeus.

O Poder Legislativo, que deveria marcar um Sistema de Poder predominantemente parlamentar, está de facto fortemente dependente do Executivo, cujo Chefe é escolhido entre a maioria partidária no Parlamento e não por voto popular directo.
Os deputados dependem muito mais do Chefe do respectivo partido que dos eleitores, pois não respondem perante estes mas sim perante o Chefe partidário (que os pode integrar ou não nas listas eleitorais, em especial, em posições elegíveis).
A prática da “disciplina de voto” torna esta dependência ainda mais acentuada, substituindo a consciência de cada deputado pela consciência do Chefe do partido.
Por exemplo um das funções do Parlamento, a fiscalização das actividades do Executivo, nunca se consegue realizar com eficácia, pois nenhum inquérito parlamentar chega a resultado diferente que não seja apoiar o Executivo.
A agravar a situação, o poder legislativo não é exclusivo do Parlamento uma vez que o próprio Executivo tem também poder legislativo, mesmo que limitado.

De facto o Executivo acaba por não ter “obrigação” de governar na base das Leis do País (claro que é abusiva a conclusão e respectiva generalização) mas das leis (novas ou alteradas) que faz aprovar pela sua maioria parlamentar, maioria essa que é dependente desse Executivo.
Uma das consequências mais evidentes é que a alternância politica do Executivo (ou até só do respectivo responsável) provoca alterações contínuas nas políticas governativas. O País cai continuamente numa governação quase casuística, frequentemente errática e praticamente marcada pelo calendário eleitoral – fonte única de preservação do Poder.

Por outro lado o Poder Judicial não só também não é suficientemente independente do Executivo como lhe falta “poder” efectivo.
À própria concepção do sistema judicial português parece faltar-lhe uma estrutura que lhe confira um Poder efectivo, intrínseco ao próprio sistema judicial, o que se manifesta por exemplo que tenha de ser um Sindicato, o Sindicato de Juízes, a defender junto dos cidadãos as posições e comportamentos dos Juízes relativas ao exercício das suas próprias funções como juízes. No mínimo tal comportamento transmite a ideia de um sistema judicial entregue às mãos de uma Corporação profissional e portanto de cariz “privada” e não de um Sistema Judicial soberano, auto responsável e directamente responsável perante os cidadãos.
Por outro lado o seu funcionamento é moroso e lento e, sendo caro para a média dos portugueses, o recurso à justiça torna-se impossível e ineficaz para a maioria dos cidadãos.

A nomeação de juízes pelo Executivo para funções fora do sistema judicial, em comissão temporária de serviço, ainda o torna mais dependente, na medida em que isso pode representar uma eventual troca de favores.
Também a existência de Tribunais sem poderes realmente judiciais e executórios, como por exemplo o Tribunal de Contas dá a entender que não se tem um concepção precisa do que é um Tribunal. Por exemplo não se entende como o Tribunal de Contas desaprova as contas de uma autarquia por não cumprimento da lei e isso não é imediatamente transformado em acções sancionatórias, inclusive a convocação de eleições antecipadas, uma vez que se está perante uma avaliação e decisão de um “Tribunal”.

A nível autárquico a confusão e a promiscuidade é quase total. Inclusive o próprio Executivo Autárquico integra todos os membros dos partidos presentes desde que detenham uma determinada percentagem de votos nas respectivas eleições. Nenhum mecanismo de auto controlo e limitação de poder é susceptível de operar dentro do sistema que constitui o actual sistema de poder autárquico.

Ou seja, na prática o poder do Estado acaba por ficar excessivamente (senão quase exclusivamente) concentrado no Executivo, porquanto não se lhe opõem contra poderes suficientemente independentes e eficazes quer a nível de órgãos de Soberania (Presidência da República, Parlamento e Tribunais) quer da Sociedade Civil aonde não há classe média suficientemente alargada, rica e independente do Estado.

A tão preciosa Separação de Poderes e o exercício de Contra Poder existente na concepção republicana da organização do Estado, realiza-se de forma muito esbatida em Portugal.

Isso pode vir a representar um risco sério à Democracia.

Apesar de tudo Portugal conseguiu desenvolver-se significativamente desde a sua entrada na União, a cidadania tomou forma e foi alargada a solidariedade efectiva a todos os cidadãos.
Contudo não devemos lançar areia para os nossos próprios olhos, foi a entrada de Portugal na União que proporcionou a melhoria significativa do nível de vida de todos os Portugueses e foi possível (com a imensa ajuda europeia) sustentar essa Solidariedade Social Alargada agora a todos.

Mas, e isso é muitíssimo importante, o trabalho das elites para se atingir esse fim, a organização dos cidadãos para se alcançar a produção e produtividade que sustentam essa solidariedade, não foi de facto ainda realizado pelas elites portugueses. Foi-o realizado pelas elites (e respectivos cidadãos) dos países europeus desenvolvidos… de onde vem a ajuda (o dinheiro) e demais competências traduzidas pelo investimento estrangeiro e “imposições” organizativas (inclusive administrativas) ao nosso Estado e à nossa sociedade.

No entanto isso tem um senão que pode ficar muito caro a Portugal; como essa ajuda passa através do Estado, a importância e papel deste na sociedade portuguesa tem continuado a aumentar em vez de diminuir. A omnipresença do Estado na sociedade portuguesa tem continuado a ser crescente.

A classe média portuguesa continua tão ou mais dependente do Estado que antes, continua pobre e pequena apesar das desnacionalizações que têm vindo a ser feitas (aliás com efeitos fortemente limitadas em virtude do poder que o Estado preserva nessas empresas).
Cerca de 2 milhões de portugueses são pobres, 20% da população.

Naturalmente que neste quadro a Competição para o domínio do Estado (poder de decisão) e do acesso à riqueza que aí é concentrada através dos Impostos e à respectiva redistribuição, constitui a actividade privilegiada das elites, mesmo quando novas.

Ou seja Portugal, que entra tardiamente na Solidariedade Alargada ao seu povo (possível com ajuda externa, quer em dinheiro como em organização), está em risco de entrar prematuramente numa fase Auto – Fagócita da sua Democracia porque não conseguiu claramente atingir ainda uma organização (politica, económica e social) que lhe proporcione auto sustentabilidade.

Por exemplo, em Portugal, os Impostos representam, ao longo da vida do cidadão, em média cerca de 65 a 70% do que produz ou dos respectivos salários (se não houver fuga aos impostos): impostos sobre os rendimentos, IVA, IRC, imposto automóvel, imposto sobre combustíveis, imposto do tabaco, impostos de rádio, imposto autárquico, portagens quando duplicadas, imposto sobre o património quando se morre, etc. A isso acrescenta-se os “impostos corporativos” ou seja os resultantes do pagamento de bens e serviços privados (melhor seria dizer: para – estatais ou para - privados) sobrevalorizados por serem protegidos pelo Estado como por exemplo medicamentos, transportes, empresas “falidas” e subvencionadas pelos impostos, etc.
E não incluímos nessa percentagem os pagamentos por “baixo da mesa” necessário para se aceder a muitos serviços públicos.
É evidente que o que sobra ao Cidadão português, da classe média, para se alimentar, vestir, educar, etc. a si e á sua família, manter dignidade e independência, é “miserável” não só proporcionalmente ao que produz e ganha (30 a 35 euros por cada 100 euros) como porque a sua produtividade torna-se (ou nunca deixou de ser) baixa “nessa” sua sociedade profundamente ineficaz.

O cidadão português fica apenas com 30 a 35% do que produz a que se associa um retorno do Estado muitíssimo pequeno e que se traduz infelizmente na ineficácia quase generalizada da prestação dos serviços públicos (que ainda tem frequentemente de pagar à parte pelo sistema da corrupção), uma assistência médica deficiente (e discriminatória a favor do funcionário público), uma educação estatal obrigatória que transforma “analfabetos em iletrados” se os pais não pagarem explicações, um sistema de reformas discriminatórias por privilegiar os funcionários públicos, os políticos, etc.

Portugal não tem Classe Média forte e independente, nem a pode criar nessas condições.
A falta ou ineficaz existência de Contra Poder ou de equilíbrio de Poder, tão necessário a uma sociedade democrática, poderia colocar em risco a Democracia em Portugal, não fosse Portugal estar “ancorado” à Europa.

Talvez a abertura continuada de Portugal à União traga para Portugal a forte classe média dos países ocidentais e sejam estes finalmente a fazer o contra poder que o Estado precisa de ter e que é garante do desenvolvimento, da igualdade e de uma Solidariedade Alargada eficaz.
Contudo há que recear a carácter útil que essas relações podem assumir. E ela aí está (a relação útil) em vários domínios porquanto os investimentos estrangeiros entram a troco de vantagens fiscais (e outras excepções legais) a que os portugueses não têm direito no seu próprio Pais.

É pois constrangedor ouvir os intelectuais portugueses repetir ad infinitum (semana após semana, ano após ano) o que vai mal no País e ver que nem um “passo” consegue ser tomado no sentido da correcção!
É que de facto as causas são mais profundas para que os respectivos problemas possam ser revolvidos como reacção linear e directa às causas imediatas que são apontadas. Não se trata de tomar medidas “voluntaristas” num ou noutro sentido pela quase única entidade com poder efectivo no país: o Executivo. Trata-se em assegurar o funcionamento de um sistema que equilibre poderes, consiga responsabilizá-los e multiplique a iniciativa social.

É essencial repensar o sistema social de poder na sociedade, é essencial que o Sistema seja reajustado de modo a criar-se mecanismos que assegurem a sua própria auto correcção de forma adequada ao fim em vista: a democracia – se esse for o objectivo.

No fundo é essencial que a concepção republicana da organização da sociedade seja criteriosamente implementada. Ou que as aspirações dos cidadãos portugueses proporcionadas pelo 25 de Abril, sejam levadas plenamente a cabo: a implementação de uma República Democrática.

1 comentário:

Anónimo disse...

convido a ler: http://causa-nossa.blogspot.com/2004/11/liberalismo-e-estado-social.html