quinta-feira, dezembro 09, 2004

Como uma Sociedade que pretendia vir a ser “Perfeita”evoluiu para a Autodestruição


O conhecimento da História das várias sociedades humanas e a comparação entre elas constitui uma ferramenta importante (para não dizer: insubstituível) para muitas das Ciências Sociais. Aliás para as Ciências Sociais o “laboratório” História é, de certo modo, o equivalente ao “laboratório” Natureza para as Ciências da Natureza.

Infelizmente não é um “laboratório” tão passivo e manipulável como o das Ciências da Natureza mas a História é a realidade (– manifesta) do comportamento humano no seu todo. Por outro lado sendo as sociedades humanas sistemas complexos adaptativos (sistemas abertos) é mais difícil interpretá-las e compreendê-las do que a dos sistemas tratados pelas Ciências da Natureza (sistemas fechados, na generalidade).

É também neste quadro, de “laboratório” vivo do homem – embora “passado”, que interessa conhecer e reflectir a história de outras sociedades para tentar vislumbrar e entender que eventuais “leis sociais” movem as nossas sociedades para além das vontades (!) de cada um ou de “muitos”.

A reflexão sobre a eficácia e os riscos da Democracia ganha imenso com o conhecimento sobre as sociedades modernas que seguiram formas distintas de desenvolvimento humano.

Ora quase em simultâneo com o desenvolvimento da Democracia no Mundo Ocidental desenvolveu-se um outro sistema de organização politica, económica e social das sociedades humanas: o Socialismo, primeiro na Rússia e posteriormente em várias outras partes do planeta.
A queda do muro de Berlim marca formalmente o falhanço da experiência socialista face à experiência democrática representada até certo ponto pela organização politica, económica e social realizada nos EUA, uma vez que só posteriormente grande parte do próprio dito mundo ocidental se foi progressivamente “assenhoreando” e implementando valores idênticos ou similares aos americanos.

Contudo a extraordinária e rica experiência humana realizada nos Países Socialistas merece ser profundamente estudada em todas as suas vertentes pois sem dúvida poderá ajudar a reflectir e ajudar a compreender mais do “processo” da História e portanto de nós e das nossas sociedades.
Também não se pode colocar de lado que “erros” semelhantes não venham de novo a ser cometidos; aliás que já não “venham a caminho”, com novas roupagens.

Marx e Engels e posteriormente os seus seguidores, inclusive muitíssimas formações ideológicas aparentadas (bolcheviques, marxistas-leninistas, maoistas, trotskistas, etc.) sustentam não só uma interpretação da dinâmica do “devir “histórico (e uma filosofia global, unitarista e unificadora: o materialismo dialéctico) mas também (e como consequência) uma nova forma de organização da sociedade.

A nova sociedade deveria permitir o surgimento de um homem novo, livre e igual, não sujeito a qualquer tipo de exploração e espoliação, solidário com o seu próximo e assegurar o desenvolvimento integral e harmonioso de cada um e de toda a sociedade.
Não é exagerado afirmar que a pretensão socialista seria conduzir o homem de novo ao “paraíso”, há muito perdido. Aliás, quanto aos fins, a solidariedade socialista não é muito distante da perspectivada pela doutrina social da Igreja Católica.

Parece-nos que o exemplo mais “puro” a estudar dessa experiência é o da ex – URSS, considerando o aprofundamento e amplo desenvolvimento ideológico que as teses de Marx e Engels aí tiveram nomeadamente tendo em vista a sua aplicação e atendendo à capacidade de auto – sustentabilidade da respectiva experiência. É pois sobre ela que irei procurar reflectir.

Não há dúvida alguma que a sociedade soviética atingiu níveis conceptuais de solidariedade social invejáveis (que só chegaram a Portugal depois do 25 de Abril).
A educação - inclusive universitária, a saúde, a reforma, etc. eram inteiramente gratuitas e universais (pelo menos formalmente) a todos os soviéticos. A habitação, a água e a electricidade, etc. eram “quase dados” pelo Estado quando disponíveis. Etc.
Era uma sociedade sem desemprego. A sociedade mantinha actividades não rentáveis ou criava sobre - emprego com vista à criação e preservação de empregos. Ninguém perdia o emprego por falência da empresa, incompetência, absentismo, etc. na medida em que o máximo que lhe acontecia seria mudar de emprego (o mesmo que os funcionários em Portugal!).
A educação, quer em extensão como em qualidade, atingiu níveis invejáveis comparativamente, ainda hoje, às sociedades democráticas do Ocidente. Em Portugal a universalização do ensino foi acompanhada pela sua contínua degradação para níveis verdadeiramente aterradores.
A URSS atingiu níveis de desenvolvimento científico e tecnológico dos mais avançados do mundo e foram mesmo pioneiros em muitos domínios do conhecimento. A Cultura (musica, teatro, dança, cinema, etc.) ficou acessível a grande parte de uma população de cerca de 300 milhões de habitantes.
Muitíssimo mais se poderia dizer e muito mais nos admiramos que isso tenha ocorrido no curto espaço de apenas três gerações, no País porventura o mais atrasado da Europa ao início da Revolução.
Não foi pois só a “moda” que levou grande número de intelectuais e cientistas ocidentais a apaixonarem-se pelas teses marxistas-leninistas. Como infelizmente não foi só a “moda” quando muitos desses intelectuais começaram, posteriormente, a criticar e abandonar essas mesmas teses.

O que correu mal? Como esta sociedade, que parecia ser tão promissora, criou a sua auto – destruição?

A resposta a esta pergunta deveria constituir uma das grandes fontes de reflexão para muitos cientistas sociais não só na medida em que se pode sustentar num efectivo “laboratório” que está disponível (e “acabado”) mas também porque marcou profundamente a existência humana de grande parte do planeta e pode constituir um imenso manancial de conhecimentos para se entender o comportamento das sociedades humanas modernas.

Olhar os aspectos positivos dessa experiência humana ou os seus aspectos negativos (ditadura e falta de liberdade, milhões de mortes, pobreza generalizada e economia ineficiente, ampla e profunda poluição ambiental, apropriação integral pelo Estado da trabalho de cada um e redistribuição ineficaz da riqueza nacional, etc.) diz pouco do que aí se passou.
É preciso procurar entender porque aconteceu desse modo e não de outro. Como se chegou a esse Sistema e como este operou para chegar ao que chegou.
É preciso entender como uma sociedade acabou por chegar ao “inferno” quando pensava estar a caminhar para o “paraíso” na Terra (e isso justificou com certeza, perante a consciência das suas elites, os milhões de mortes que provocaram e as perdas de direitos, inclusive de liberdade, dos soviéticos; aliás como “pretende” Fidel de Castro no seu livro “A História Absolver-me-á”).

A necessidade de “impor” a “igualdade” a todos os cidadãos (não só perante a lei mas também económica, educativa, de oportunidades, etc.) exigia uma ditadura. No caso vertente a ditadura do proletariado porque sendo os mais explorados do capitalismo seriam naturalmente os que mais compreenderiam, dariam “valor” e lutariam pelos novos valores de igualdade e solidariedade.
Não era pois uma ditadura qualquer, mas uma ditadura que deveria trazer em si a capacidade de acabar com a exploração do homem pelo homem e acabar com a luta de classes. Ou seja criar efectivamente um mundo “novo” de homens livres e iguais.
Consequentemente a sociedade soviética concentrou todo o Poder da sociedade no Estado e dentro deste no Executivo. O poder legislativo e o poder judicial dependiam efectivamente do Executivo, mesmo que formalmente não o fossem.
Ou seja o próprio Sistema de Poder do Estado deixou de integrar um Sistema de Contra Poderes, tão caro ao velho conceito de República.

Mas isso não bastou! Também o poder da sociedade civil deveria ser coarctado.
Tendo-se considerado que a dinâmica da História era uma consequência da luta de classes e que esta não só tinha origem na economia como era dominada pelos detentores do poder económico havia que se lhes tirar este poder. A economia do Pais foi pois totalmente nacionalizada (inclusive a terra) e os soviéticos passaram de uma “assentada” é ser todos funcionários públicos inclusive os membros das cooperativas dado que estas não eram mais que uma forma para - estatal de organização da produção a operar num mercado dirigido por uma economia planificado(!).
A economia informal, que persistiu ou se desenvolveu posteriormente, era local e tinha uma dimensão muito reduzida.
Ou seja o poder (independente) da sociedade civil, que na Rússia sempre tinha sido pequeno, deixou de existir com a revolução bolchevique e as nacionalizações que se lhe seguiram.

O Sistema de Poder na URSS ficou pois totalmente concentrado nas mãos do Estado e dentro deste nas mãos do Executivo, cujo Chefe era o Presidente (Secretário Geral) do único Partido permitido.

O Sistema estruturou-se (consciente ou inconscientemente) para que a ditadura se viesse a concentrar não só no Partido e, através deste, no Estado, mas sim numa só entidade: o Executivo …, e até numa pessoa (!): o seu Presidente.

Toda a iniciativa social independente na URSS (e em praticamente todos os domínios) passou a ser exclusiva do Estado e do Executivo.

Sem dúvida que isso proporcionou à URSS uma capacidade imensa de realização. Os “programas” podiam ser rigidamente cumpridos por toda a sociedade e sem discussão, nomeadamente no rápido alargamento da solidariedade social.
Mas rapidamente também os efeitos negativos de tal sistema se começaram a sentir: o poder foi cada vez mais ocupado pelos funcionários do Partido, a economia torna-se progressivamente mais ineficaz e como tal cada vez mais incapaz de sustentar tanto gasto improdutivo, etc.

Por outro lado como qualquer sistema, este gerou também os que nele estavam interessados não só em preservá-lo em si como em o ampliar em seu beneficio (as respectivas elites) pois embora a posse privada se limitasse quase só aos bens pessoais havia o privilegiadíssimo direito de acesso ao usufruto da imensa riqueza nacional, ou seja dos serviços e bens produzidos pela sociedade, agora concentrados num único patrão: o Estado.
Portanto o único estimulo à dinâmica social passou a ser a conquista do acesso ao usufruto desses bens e serviços na posse do Estado. Ou seja fazer parte do Partido e aceder a lugares de direcção dentro deste e do Estado.
Como este tinha um poder ilimitado (em consequência da sua concepção e também porque incriticável) a resposta do sistema a qualquer oposição foi fechar-se cada vez mais e tornar-se cada vez menos tolerante. O que não era difícil pois não havia Contra Poderes possíveis dentro da sociedade soviética.

O sistema soviético tornou-se pois um sistema fechado; um sistema fechado não só relativamente ao seu Estado mas a toda a sociedade da URSS uma vez que esta foi despojada de qualquer poder e iniciativa.
Em qualquer sistema fechado perde-se a capacidade de auto correcção aos “erros”, mesmo se detectados.
Aliás, precisamente porque, estando-se a tratar de sistemas complexos adaptativos (porque sistemas humanos), os próprios “erros” acabam por constituir-se como condições de sobrevida para uma parte do sistema (pelo menos para as elites).

Quando a “tampa” foi entreaberta, por iniciativa de um (!) membro da elite - o Chefe - com o objectivo de tentar corrigir o sistema e dar-lhe novo fôlego, foi a “explosão”! A URSS caiu como um baralho de cartas. Ninguém (!) queria aquele sistema.

Uma das causas para essa incapacidade (a de auto – correcção do sistema) terá sido sem dúvida a inexistência de Contra Poderes dentro do Estado e na Sociedade Civil.
O Sistema estava refém de um Estado omnipresente e omnipotente a toda a sociedade soviética; Estado esse por sua vez refém de uma elite de iguais (funcionários do partido) omnipresente e omnipotente a todo o Estado.

A probabilidade de sistemas políticos evoluírem desta forma (para sistemas ditatoriais e ou na posse de elites mais ou menos fechadas) é uma constante da História Humana.
Neste caso a “estranheza” está em isso ter ocorrido a um Sistema cujos conceptualizadores (filósofos e intelectuais, profundamente honestos e de boa vontade) o pensarem e estruturarem como capaz de conduzir a sociedade humana a uma sociedade nova: integral e absolutamente solidária e igualitária; proporcionando o desenvolvimento livre, integral e harmonioso do individuo e da sociedade, o termino da espoliação e da exploração do povo pelas elites, etc.

Mas mais uma vez o problema não é concluir-se que o “inferno está cheio de bem intencionados” mas sim saber como impedir que os “bem intencionados” deixem de o ser (mesmo inconscientemente) e impedir que nos conduzam ao inferno antes de chegar a ele - o inferno.

Parece-nos que o único ensinamento que se encontra na História para que os Sistemas se mantenham flexíveis e dinâmicos é o direito à liberdade e à tolerância e que estes direitos só se conseguiram desenvolver e preservar quando houve equilíbrio de Poderes, isto é com a existência de Contra Poderes que impeçam a ditadura (mais ou menos formal e mais ou menos consciente) das elites “bem intencionados” estejam eles no Estado ou na Sociedade Civil, embora os efeitos sejam muito mais dramáticos quando se concentram no Estado.
Talvez seja por isso que nunca houve ditaduras nos sistemas anglo – saxónicos, nos quais muito cedo se criaram mecanismos relativamente eficazes não só de Contra Poder dentro do Estado e se desenvolveu um forte poder (Contra Poder) na sociedade civil mas também se criou um sistema judicial bastante transparente e igualizador no direito aplicado (e não apenas no direito formalmente escrito), portanto um sistema judicial eficaz.

A ex – URSS é o exemplo das consequências do exercício do poder num Estado sem Contra Poderes algum, inclusive da respectiva sociedade civil a quem lhe foi tirada toda a independência e capacidade de iniciativa social.

A vantagem do estudo desta sociedade é que as relações sociais e as suas consequências, em especial as de Poder, aparecem aqui relativamente “puras” e fáceis de “vislumbrar” em oposição a outros sistemas nas quais as relações do mesmo tipo nos aparecem “encobertas”, em especial nas suas consequências de longo prazo, por estarem contra balançadas por alguma maior ou menor “abertura” do respectivo sistema.

domingo, novembro 28, 2004

Quando a Solidariedade se torna Autófago da Democracia: Parte Quatro - Portugal


Em Portugal a Solidariedade Alargada aos súbditos é muito recente apesar dos portugueses gostarem de afirmar que são uma das Nações mais antigas da Europa. Ou seja o “súbdito” português há muito pouco tempo que “passou” a ser “cidadão”.

Contudo como o “processo” foi essencialmente “importado” da Europa o resultado é que continua a haver pouca consciência social da coincidência entre os interesses das elites e dos cidadãos nacionais.
O funcionalismo público português é disso um bom exemplo: ainda hoje os funcionários públicos crêem-se dever ser “servidos” pelos cidadãos e não o contrário.
Para quem vive fora de Portugal, é contínua a admiração do nenhum ou do pouco apoio dado aos portugueses pelas respectivas representações diplomáticas ou consulares em comparação com o que recebem outros cidadãos europeus em circunstâncias idênticas, especialmente em situações delicadas que envolvem direitos de cidadania.

O conceito de cidadania e o respeito pela liberdade e igualdade para todos os portugueses sempre foi (quando legalmente instituída) essencialmente mais “formal” que efectivo.
Praticamente só pós o 25 de Abril e pós a entrada de Portugal na União, os portugueses passaram a ser considerados cidadãos de pleno direito.

Em parte, o “petróleo” provenientes das descobertas (especiarias) e posteriormente das colónias (comércio triangular, ouro, diamantes, etc.) justificou a não necessidade de trabalhar das elites portuguesas no poder.

Impressiona pois o nível de analfabetismo com que Portugal inicia o século XX e o baixíssimo número de licenciados, o baixo nível de produtividade agrícola e a sua indústria tecnologicamente pouco desenvolvida.
Portugal, até ao 25 de Abril, manteve uma elite pouco solidária com a Nação (enquanto constituída por um povo). As Corporações (de muitos poucos iguais) sempre foram subservientes ou até promíscuas com o Estado: que lhes assegurava um povo submetido, a protecção contra a livre competição interna e externa e, o mais importante, uma redistribuição privilegiada da riqueza nacional ou do “petróleo” das colónias.

Utilizando o que afirma Zakarias, as elites portuguesas, à semelhança dos actuais países do terceiro mundo, não foram obrigadas a trabalhar tanto como outras elites europeias no desenvolvimento das respectivas Nações.
De facto, Portugal nunca criou uma classe média significativa e, muito menos, forte e independente do Poder (Estado).

Assim e apesar de ser contraditório com a liberdade e a democracia, as nacionalizações de parte significativa da economia nacional, efectuadas pós 25 de Abril, ainda aumentaram mais a importância e omnipresença do Estado no País.
Deixou mesmo de praticamente ser impossível viver com alguma qualidade em Portugal fora da “protecção” do Estado.

Se antes do 25 de Abril a independência da classe média portuguesa face ao Estado era pequena depois passou a ser quase nula. Se antes do 25 de Abril a classe média portuguesa era já pequena depois passou a ser ainda mais reduzida e quase exclusivamente concentrada no funcionalismo público, nas instituições e empresas públicas.

Consequentemente a nova Constituição portuguesa foi essencialmente uma criação voluntarista das elites no Poder e tão afastada da realidade nacional que tem vindo a ter de ser contínua e sucessivamente alterada.
Naturalmente e como consequência, a concepção republicana da organização do Estado não está aí plenamente reflectiva.

O Presidente da República, eleito directamente pelos cidadãos, não tem poder efectivo algum, assemelhando-se muito as suas funções às dos actuais monarcas europeus.

O Poder Legislativo, que deveria marcar um Sistema de Poder predominantemente parlamentar, está de facto fortemente dependente do Executivo, cujo Chefe é escolhido entre a maioria partidária no Parlamento e não por voto popular directo.
Os deputados dependem muito mais do Chefe do respectivo partido que dos eleitores, pois não respondem perante estes mas sim perante o Chefe partidário (que os pode integrar ou não nas listas eleitorais, em especial, em posições elegíveis).
A prática da “disciplina de voto” torna esta dependência ainda mais acentuada, substituindo a consciência de cada deputado pela consciência do Chefe do partido.
Por exemplo um das funções do Parlamento, a fiscalização das actividades do Executivo, nunca se consegue realizar com eficácia, pois nenhum inquérito parlamentar chega a resultado diferente que não seja apoiar o Executivo.
A agravar a situação, o poder legislativo não é exclusivo do Parlamento uma vez que o próprio Executivo tem também poder legislativo, mesmo que limitado.

De facto o Executivo acaba por não ter “obrigação” de governar na base das Leis do País (claro que é abusiva a conclusão e respectiva generalização) mas das leis (novas ou alteradas) que faz aprovar pela sua maioria parlamentar, maioria essa que é dependente desse Executivo.
Uma das consequências mais evidentes é que a alternância politica do Executivo (ou até só do respectivo responsável) provoca alterações contínuas nas políticas governativas. O País cai continuamente numa governação quase casuística, frequentemente errática e praticamente marcada pelo calendário eleitoral – fonte única de preservação do Poder.

Por outro lado o Poder Judicial não só também não é suficientemente independente do Executivo como lhe falta “poder” efectivo.
À própria concepção do sistema judicial português parece faltar-lhe uma estrutura que lhe confira um Poder efectivo, intrínseco ao próprio sistema judicial, o que se manifesta por exemplo que tenha de ser um Sindicato, o Sindicato de Juízes, a defender junto dos cidadãos as posições e comportamentos dos Juízes relativas ao exercício das suas próprias funções como juízes. No mínimo tal comportamento transmite a ideia de um sistema judicial entregue às mãos de uma Corporação profissional e portanto de cariz “privada” e não de um Sistema Judicial soberano, auto responsável e directamente responsável perante os cidadãos.
Por outro lado o seu funcionamento é moroso e lento e, sendo caro para a média dos portugueses, o recurso à justiça torna-se impossível e ineficaz para a maioria dos cidadãos.

A nomeação de juízes pelo Executivo para funções fora do sistema judicial, em comissão temporária de serviço, ainda o torna mais dependente, na medida em que isso pode representar uma eventual troca de favores.
Também a existência de Tribunais sem poderes realmente judiciais e executórios, como por exemplo o Tribunal de Contas dá a entender que não se tem um concepção precisa do que é um Tribunal. Por exemplo não se entende como o Tribunal de Contas desaprova as contas de uma autarquia por não cumprimento da lei e isso não é imediatamente transformado em acções sancionatórias, inclusive a convocação de eleições antecipadas, uma vez que se está perante uma avaliação e decisão de um “Tribunal”.

A nível autárquico a confusão e a promiscuidade é quase total. Inclusive o próprio Executivo Autárquico integra todos os membros dos partidos presentes desde que detenham uma determinada percentagem de votos nas respectivas eleições. Nenhum mecanismo de auto controlo e limitação de poder é susceptível de operar dentro do sistema que constitui o actual sistema de poder autárquico.

Ou seja, na prática o poder do Estado acaba por ficar excessivamente (senão quase exclusivamente) concentrado no Executivo, porquanto não se lhe opõem contra poderes suficientemente independentes e eficazes quer a nível de órgãos de Soberania (Presidência da República, Parlamento e Tribunais) quer da Sociedade Civil aonde não há classe média suficientemente alargada, rica e independente do Estado.

A tão preciosa Separação de Poderes e o exercício de Contra Poder existente na concepção republicana da organização do Estado, realiza-se de forma muito esbatida em Portugal.

Isso pode vir a representar um risco sério à Democracia.

Apesar de tudo Portugal conseguiu desenvolver-se significativamente desde a sua entrada na União, a cidadania tomou forma e foi alargada a solidariedade efectiva a todos os cidadãos.
Contudo não devemos lançar areia para os nossos próprios olhos, foi a entrada de Portugal na União que proporcionou a melhoria significativa do nível de vida de todos os Portugueses e foi possível (com a imensa ajuda europeia) sustentar essa Solidariedade Social Alargada agora a todos.

Mas, e isso é muitíssimo importante, o trabalho das elites para se atingir esse fim, a organização dos cidadãos para se alcançar a produção e produtividade que sustentam essa solidariedade, não foi de facto ainda realizado pelas elites portugueses. Foi-o realizado pelas elites (e respectivos cidadãos) dos países europeus desenvolvidos… de onde vem a ajuda (o dinheiro) e demais competências traduzidas pelo investimento estrangeiro e “imposições” organizativas (inclusive administrativas) ao nosso Estado e à nossa sociedade.

No entanto isso tem um senão que pode ficar muito caro a Portugal; como essa ajuda passa através do Estado, a importância e papel deste na sociedade portuguesa tem continuado a aumentar em vez de diminuir. A omnipresença do Estado na sociedade portuguesa tem continuado a ser crescente.

A classe média portuguesa continua tão ou mais dependente do Estado que antes, continua pobre e pequena apesar das desnacionalizações que têm vindo a ser feitas (aliás com efeitos fortemente limitadas em virtude do poder que o Estado preserva nessas empresas).
Cerca de 2 milhões de portugueses são pobres, 20% da população.

Naturalmente que neste quadro a Competição para o domínio do Estado (poder de decisão) e do acesso à riqueza que aí é concentrada através dos Impostos e à respectiva redistribuição, constitui a actividade privilegiada das elites, mesmo quando novas.

Ou seja Portugal, que entra tardiamente na Solidariedade Alargada ao seu povo (possível com ajuda externa, quer em dinheiro como em organização), está em risco de entrar prematuramente numa fase Auto – Fagócita da sua Democracia porque não conseguiu claramente atingir ainda uma organização (politica, económica e social) que lhe proporcione auto sustentabilidade.

Por exemplo, em Portugal, os Impostos representam, ao longo da vida do cidadão, em média cerca de 65 a 70% do que produz ou dos respectivos salários (se não houver fuga aos impostos): impostos sobre os rendimentos, IVA, IRC, imposto automóvel, imposto sobre combustíveis, imposto do tabaco, impostos de rádio, imposto autárquico, portagens quando duplicadas, imposto sobre o património quando se morre, etc. A isso acrescenta-se os “impostos corporativos” ou seja os resultantes do pagamento de bens e serviços privados (melhor seria dizer: para – estatais ou para - privados) sobrevalorizados por serem protegidos pelo Estado como por exemplo medicamentos, transportes, empresas “falidas” e subvencionadas pelos impostos, etc.
E não incluímos nessa percentagem os pagamentos por “baixo da mesa” necessário para se aceder a muitos serviços públicos.
É evidente que o que sobra ao Cidadão português, da classe média, para se alimentar, vestir, educar, etc. a si e á sua família, manter dignidade e independência, é “miserável” não só proporcionalmente ao que produz e ganha (30 a 35 euros por cada 100 euros) como porque a sua produtividade torna-se (ou nunca deixou de ser) baixa “nessa” sua sociedade profundamente ineficaz.

O cidadão português fica apenas com 30 a 35% do que produz a que se associa um retorno do Estado muitíssimo pequeno e que se traduz infelizmente na ineficácia quase generalizada da prestação dos serviços públicos (que ainda tem frequentemente de pagar à parte pelo sistema da corrupção), uma assistência médica deficiente (e discriminatória a favor do funcionário público), uma educação estatal obrigatória que transforma “analfabetos em iletrados” se os pais não pagarem explicações, um sistema de reformas discriminatórias por privilegiar os funcionários públicos, os políticos, etc.

Portugal não tem Classe Média forte e independente, nem a pode criar nessas condições.
A falta ou ineficaz existência de Contra Poder ou de equilíbrio de Poder, tão necessário a uma sociedade democrática, poderia colocar em risco a Democracia em Portugal, não fosse Portugal estar “ancorado” à Europa.

Talvez a abertura continuada de Portugal à União traga para Portugal a forte classe média dos países ocidentais e sejam estes finalmente a fazer o contra poder que o Estado precisa de ter e que é garante do desenvolvimento, da igualdade e de uma Solidariedade Alargada eficaz.
Contudo há que recear a carácter útil que essas relações podem assumir. E ela aí está (a relação útil) em vários domínios porquanto os investimentos estrangeiros entram a troco de vantagens fiscais (e outras excepções legais) a que os portugueses não têm direito no seu próprio Pais.

É pois constrangedor ouvir os intelectuais portugueses repetir ad infinitum (semana após semana, ano após ano) o que vai mal no País e ver que nem um “passo” consegue ser tomado no sentido da correcção!
É que de facto as causas são mais profundas para que os respectivos problemas possam ser revolvidos como reacção linear e directa às causas imediatas que são apontadas. Não se trata de tomar medidas “voluntaristas” num ou noutro sentido pela quase única entidade com poder efectivo no país: o Executivo. Trata-se em assegurar o funcionamento de um sistema que equilibre poderes, consiga responsabilizá-los e multiplique a iniciativa social.

É essencial repensar o sistema social de poder na sociedade, é essencial que o Sistema seja reajustado de modo a criar-se mecanismos que assegurem a sua própria auto correcção de forma adequada ao fim em vista: a democracia – se esse for o objectivo.

No fundo é essencial que a concepção republicana da organização da sociedade seja criteriosamente implementada. Ou que as aspirações dos cidadãos portugueses proporcionadas pelo 25 de Abril, sejam levadas plenamente a cabo: a implementação de uma República Democrática.

segunda-feira, novembro 15, 2004

Quando a Solidariedade se torna Autófago da Democracia: Parte três - Solidariedade dês estruturante

A redistribuição do conteúdo da “manjedoura” alimentada pelos Impostos (em espécie, trabalho ou dinheiro) constituiu objectivo central para a tomada do Poder e constitui, ainda hoje, uma importante fonte de subsistência e poder das elites.
Nas sociedades democráticas a legitimidade dos impostos é-lhe conferida pela governação ao serviço de todos os cidadãos, nomeadamente pela solidariedade alargada à Nação, que deve ser promovida.
A solidariedade, que representa um alargamento da primária solidariedade Familiar a colectivos amplos como a Nação ou mesmo o planeta, não pode evitar contudo a competição (inter grupos), inclusive no sentido da colheita de uma maior fatia nessa redistribuição. Aliás nem é mesmo desejável que a solidariedade alargada anule a competição inter grupos (se é que de algum modo isso fosse possível!).
No entanto o desenvolvimento dessa solidariedade tem os seus perigos, nomeadamente se não for assegurado um adequado equilíbrio de interesses.

Ora a única maneira, relativamente estável, disso ser assegurado é um equilíbrio de poderes: dentro do próprio Estado e entre este a sociedade civil.
A limitação do poder dos reis e a institucionalizado da República, com o respectivo equilíbrio de poder entre executivo, legislativo e judicial, foram sem dúvida passos determinantes nesse caminho: no aumento do poder da sociedade civil face ao Estado.
Ora isso exige, pelo menos, uma classe média rica, independente do Estado e capaz de se fazer ouvir.

Ora o que se pode passar é que a Solidariedade pode estender-se de tal modo que o custo em impostos pese excessivamente ao cidadão e consequentemente este deixe de poder manter a força e independência necessária para contra balançar o Estado. E o Estado passa a estar omnipresente na vida da Nação e dos cidadãos.

Outro aspecto é que o alargamento da Solidariedade e a correspondente justificação para uma cada vez maior intervenção sobre a sociedade conduz impreterivelmente à elevação de impostos e à crescente ineficácia do Estado.
Quantos euros são precisos injectar no Estado para se receber um euro da dita “solidariedade”?
Qual a eficiência do investimento do Estado face à média alcançada por correspondente investimento privado? E quando é que este investimento não passa a ser uma forma encoberta de redistribuição da riqueza nacional?

Também os efeitos no comportamento social dos cidadãos conduzem frequentemente à desresponsabilização e desincentivo à sua própria iniciativa.
O Estado passa a ter de “resolver tudo”, é destruído o espírito de iniciativa dos cidadãos inclusive de solidariedade para com o próximo (é tudo responsabilidade do Estado, e de facto este fica-lhe com “todo” o dinheiro!), o bom negócio passa a ser obter colocação como funcionário público, politico, etc. ou é ser subvencionado ou cliente do Estado (de facto, o grande patrão), etc.

A concentração de elevados meios financeiros nas mãos do Estado versus uma sociedade civil pobre ou incapaz de contra poder aumenta a possibilidade de corrupção e o apetite de domínio e partilha do Poder entre alguns (os iguais).

Muitos dos cidadãos mais competentes, com espírito de iniciativa e desejo de independência (e de não se deixarem espoliar) abandonam o País.

Se a isso se acrescentar um Estado aonde os poderes executivo, judicial e legislativo não se conseguem contra balançar, estar-se-á a um passo da “Democracia” se transformar em Demagogia.

O desejo de igualdade que conduziu à Democracia e correspondente alargamento da solidariedade induz a desigualdade. De facto com consequências muitíssimo semelhantes ao que se passou nos países do Leste Europeu, sob o comunismo.

Ou seja a solidariedade alargada pode tornar-se autófago da Democracia.
O contínuo alargamento da igualdade (inter grupo) começa a retroceder assim como a solidariedade efectiva e a competição (entre grupos) concentra-se no domínio do Estado e no acesso às suas benesses. A própria competição, que deveria ser positiva à sociedade, passa a ser negativa.
Em nome da solidariedade pode pois diminuir-se seriamente o contra poder dos cidadãos (os outros) e induzir (mesmo que inconscientemente) o direito (legalizado) à exploração (encoberta) pelas elites detentoras do poder do Estado.

No entanto concluir que é bom para todos, cidadãos e elites, que os cidadãos devem ter poder para contra balançar o Estado não é uma verdade com interesse para muitos. E muito menos que esse poder só existe se parte significativa da riqueza nacional ficar nas mãos de quem a cria (dos cidadãos e respectivas associações) e não do Estado (e das elites que o controlam).

Ou seja, mesmo havendo consciência da importância em limitar seriamente o poder do Estado face ao cidadão, é muito difícil fazê-lo porque é dominante a tradição do “predador – paizinho” e do “espoliado – filho” (a chave e a fechadura que se auto construíram, uma à outra).
Apesar das Igrejas Cristãs terem tido um papel central no alargamento da solidariedade humana, a Igreja Católica (de certo modo em oposição às igrejas protestantes) tem sido bastante favorável ao conceito de cidadão “coitadinho” ou seja à preservação da relação “pai – filho” que encobre, infelizmente, muitas vezes uma relação “predador - espoliado”.

De facto só a sociedade americana tem a tradição (muito curta, aliás) de que ninguém tem de ser pai ou filho. Todos os cidadãos têm de tomar conta de si como adultos e iguais que são.
E por isso também, o poder do Estado tem de ser limitado. O sistema de contra poderes existente nos EUA visa esse objectivo e a Democracia aberta, iliberal, foi vista como “tendente” à Demagogia pelos “fundadores” do Estado americano.

quarta-feira, novembro 03, 2004

Quando a Solidariedade se torna Autófago da Democracia: Parte Dois - O alargamento da igualdade e o direito à cidadania

Se a História nos mostra o “desenvolvimento humano” associado ao alargamento contínuo do intra grupo solidário (número de iguais – cidadãos, nas democracias) e à liberdade individual e de competição entre grupos é porque a respectiva sociedade, como um todo, alcançou níveis de eficiência social maiores que as sociedades humanas que não seguiram o mesmo caminho.

Contudo a “democratização”, como sinónimo de eleição do governo pelo povo, não tem conduzido, na maior parte das recém democracias, aos modelos sociais dos países desenvolvidos do ocidente. Em alguns desses países o sistema “democrático” apenas acabou por legalizar “ditaduras” (incompetentes e ou corruptas) eleição após eleição. Ou seja, nesses casos, a “democracia” conduziu à demagogia como era aliás receio dos “fundadores” dos EUA.

Mas mesmo para os países desenvolvidos do ocidente começam a aparecer alertas constantes dos perigos que estas sociedades estão a enfrentar em virtude do que parece ser uma clara diminuição da taxa de aumento da sua eficiência. A Europa está com problemas sérios (e a “afastar-se” cada vez mais dos EUA) e mesmo os EUA começam a sentir necessidade de reequacionar algumas das suas políticas internas.
É certo que estas sociedades ainda não se debatem com concorrências (competição) suficientemente fortes para as colocar em causa, contudo não se pode deixar de ter presente que muitas civilizações anteriores desapareceram não por causa da competição externa mas porque se foram progressivamente auto – destruindo.

Muitas das reflexões sobre o futuro das sociedades desenvolvidas começaram, de forma indirecta, quando se pretendeu compreender o “bloqueio” dos países do terceiro mundo ao desenvolvimento. Também as teses que sustentaram as teorias e a experiência comunista são profundamente enriquecedoras na compreensão da organização e funcionamento das sociedades humanas modernas embora pense que não têm merecido o necessário estudo, em especial após a auto – destruição dessas sociedades.

Farred Zakaria em “O Futuro da Liberdade” afirma “que um país que entabule a sua transição para a Democracia quando atinja um PIB per capita entre 3000 e 6000 dólares terá sucesso”.
Segundo este investigador, a excepção a esta “praxis”, acontece se o país tiver uma “riqueza natural” (como o petróleo) que proporcione um elevado rendimento às elites (os iguais) sem que estas estejam obrigadas para tal a organizar e estruturar adequadamente a respectiva sociedade. Ou seja as elites podem viver do “petróleo” e como tal não têm necessidade de “explorar” o respectivo povo (que pouco produz).
Deste modo as elites não sentem necessidade de desenvolver e estruturar relações simbióticas (positivas) entre elites e povo de modo a aumentar a produção (riqueza) nacional.

Talvez seja essa a causa “profunda” porque, para além de enriquecerem as elites locais, a “ajuda” externa dos países desenvolvidos aos sub desenvolvidos não esteja a resolver minimamente os problemas com que esses países se debatem. A “ajuda” (associada ao simples perdão das dividas) assume de certo modo o papel de “petróleo”: as elites enriquecem (ou vivem bem) com essa “ajuda” sem precisar de “trabalhar”.
Ou seja as relações simbióticas que se deveriam desenvolver entre elites e povo não se constituem para além de algum carácter predatório ou “útil” que assumam.

Segundo Zakaria para se alcançar o PIB per capita, acima referido, as respectivas elites foram obrigadas a criar condições (organização e estruturação adequadas) que possibilitam aos respectivos cidadãos conseguirem atingir os níveis correspondentes de produção e de produtividade.
Essas condições são as que conduziram as sociedades ocidentais ao nível da eficiência correspondente à organização politica e social que se denomina de Democracia.

Historicamente, essas condições (para a Democracia) têm de ser procuradas na cultura anglo-saxónica pois foi aí que se iniciou parte significativa de todo este processo. A limitação do poder do Estado (primeiramente do Rei) e consequentemente do alargamento do número de iguais é sem dúvida um aspecto importante.
Consequentemente o conceito de liberdade e de igualdade (favorecido pelo modelo de justiça anglo-saxónico, muito transparente e auto – responsabilizante) e o conceito de Nação surgem historicamente muito cedo na Inglaterra. Certamente, não são conceitos universais a todos os cidadãos, mas o número dos que gozavam dele era já muito elevado e isso impunha limitações ao Poder, nomeadamente no estabelecimento e cobrança de impostos.
Isso permitiu, cedo, criar-se uma forte classe média e deu aos cidadãos iniciativa e capacidade financeira (poder) para uma cada vez maior e mais independente participação na sociedade. É interessante notar que, enquanto no Continente Europeu o Estado assumia (e assume) com frequência a iniciativa em muitos domínios económicos e sociais, na Grã-Bretanha eram (e são) os cidadãos a fazê-lo.

Segundo Zakaria, o sucesso da Democracia exige pois que o rendimento por cidadão seja de tal modo elevado que ele consiga assegurar, com alguma eficácia, um contra poder importante ao Estado, inclusive através das suas associações. Ou seja, a Democracia só se mantém e se auto – sustenta, se o País tiver uma classe média suficientemente forte, alargada e independente.

Parece pois que é importante à Democracia que o cidadão e as suas instituições privadas sejam a primeira figura da sociedade e não o Estado, cujo comportamento se pode tornar facilmente instável e potencialmente predatório se não contrabalançado por aqueles.

Talvez não tenha sido ocasional que os EUA sem tradições, especialmente exploratórias, herdeiros de um sistema de Estado limitado e de um sistema de justiça transparente e auto responsabilizante (o Inglês) e herdeiros dos ideais da Revolução Francesa (pelo menos formalmente, esmagada na Europa!) tenha sido o primeiro exemplo e representante da moderna forma do ideal democrático e do modo como se estruturou o Poder de Estado face à cidadania (ao povo).
Aliás, apenas no fim da segunda guerra mundial uma parte da Europa Continental se encaminhou decididamente para a Democracia. Antes disso grande parte dos países estavam muito próximos ou eram mesmo fascistas, pró fascistas ou “ambíguos” face ao fascismo (nem a Inglaterra se pode afastar dessas simpatias!) e mesmo depois da guerra parte significativa deles abraçou uma nova forma de ditadura: o comunismo.

De facto a probabilidade de implementação do contrário é que seria de admirar, pois o peso da tradição exploratória (consciente ou inconsciente… “de bem intencionados está o inferno cheio”) é muito elevado e constituiu-se historicamente como a estruturante para a “civilização” humana!

É a velha Europa!
De facto não o é. É sim: o velho Mundo.
Contudo talvez não seja tão “velho” assim, pois nada nem ninguém assegura que o ideal democrático “vingue” no planeta.
Esse livro de Zakarias é um “grito” de aviso, inclusive aos países desenvolvidos do ocidente.

Uma classe média forte e alargada só se constitui se o cidadão poder atingir elevados graus de produtividade (o que exige nomeadamente uma elevada eficiência no papel do Estado) e se o cidadão não for espoliado pelas elites (de poucos iguais) da riqueza que produz, nomeadamente através de Impostos excessivos.

O poder do cidadão face ao Estado (às elites) é pois assegurado principalmente pelo que pode reter para si da “riqueza” que cria e acessoriamente (se não for elite) do direito que lhe cabe na redistribuição efectuada pelo Estado (de forma directa ou indirecta), se esse direito não depender do poder discricionário do Estado. Caso contrário poderá converter-se numa forma de tornar o cidadão ainda mais dependente (e subserviente) do Estado (das elites que detêm o respectivo poder).

É evidente que há sempre possibilidade (mesmo que teórica) de excepção. Por exemplo se houver uma elevada coincidência (melhor seria dizer: fusão) de interesses entre o Estado e os respectivos cidadãos e aquele os representasse plenamente. Neste caso a riqueza criada por cada cidadão até poderia ir toda para o Estado que depois a redistribuiria pelos cidadãos segundo as suas possibilidades … isso pretendia Marx na sociedade socialista e foi experimentado nos países do leste europeu com as consequências que se conhecem.
Não chegando à utopia de Marx, é possível admitir que essa coincidência ou fusão de interesses Estado/cidadão possa ocorrer em sociedades etnicamente (portanto culturalmente) muito uniformes e com fortes tradições de valorização social do trabalho e de entre ajuda (motivados por exemplo pelo rigor ou perigosidade do meio envolvente), como por exemplo os países nórdicos da Europa.

Nas sociedades desenvolvidas modernas as relações sociais são seguramente muito complexas, mas o “cabouco” biológico estruturante, da solidariedade e da competição, está lá.
Nomeadamente a tradição exploratória (dos outros pelos iguais) pode encobrir-se na solidariedade social alargada promovida pelo Estado. Neste caso a solidariedade passa a estruturar a sociedade negativamente.

quinta-feira, outubro 28, 2004

Quando a Solidariedade se torna Autófago da Democracia - Parte Um: Solidariedade e Competição

O “cabouco” da solidariedade está inscrito na natureza biológica do homem. À semelhança de muitos outros seres vivos, o ser humano nasce “prematuro” (a sua sobrevivência exige a intervenção activa dos pais durante vários anos) e só se realiza na vida (enquanto continuidade biológica) através da união com outro ser humano de sexo oposto.
A biologia estruturou a solidariedade, primeira, centrada nos pais (em especial na mãe), portanto na óptica da Família.

Do mesmo modo, o “cabouco” da competição está inscrito na natureza biológica do homem, na medida em que o individuo precisa de assegurar a respectiva sobrevivência e procriação, que se realiza frequentemente contra e ou apesar de… . Ou seja a competição está centrada na óptica do indivíduo adulto.

Consequentemente a solidariedade é, basicamente, intra grupo e a competição inter grupos.

Sobre essas necessidades (enquanto “imposição”) biológicas foram-se estruturando não só a mente humana como a respectiva organização social. Ou seja, sobre aquelas necessidades biológicas, primeiras, estruturaram-se formas progressivamente mais complexas de solidariedade e competição.
Habitualmente fundamenta-se as atitudes de solidariedade ou competitivas em motivações próximas contudo as suas raízes estão lá, na organização biológica do ser humano.
A História é um imenso manancial de informação sobre o como se processou essa evolução, das formas que foi assumindo a solidariedade e a competição na sociedade humana.

A associação entre a solidariedade, no seio da família e do grupo com as mesmas origens (clã, horda, etc.), e a competição muito cedo tomaram forma na História humana: saques, razias, conquista de melhores “espaços”, etc. tomados aos outros – os bárbaros - em benefício de um grupo de iguais (no sentido de distinto desses “outros” –os bárbaros).
A isso seguiu-se, frequentemente, a “conquista” do Governo de povos, previamente subjugados à força, e o surgimento de uma mais clara distinção entre governantes e súbditos (e mesmo escravos). Os primeiros governantes terão sido, na maioria das vezes, etnicamente distintos dos súbditos.

À semelhança do que se observa na evolução biológica, a associação entre solidariedade entre iguais e a competição com os outros pode-se ir transformando e assumir mesmo a forma de simbiose quando esta relação deixa de implicar a destruição do outro e se torna suficientemente contínua ou periódica. No fundo a simbiose surge por imperativo da proximidade e da correspondente relação.

Está-se como que perante uma fusão entre os interesses solidários de alguns e as consequências da respectiva imposição aos outros. A chave e a fechadura como que se auto constroem nessa relação.

A solidariedade entre iguais e a competição com os outros cede lugar a relações simbióticas cada vez mais complexas, em que as deslocações verticais e horizontais entre iguais e outros aumentam progressivamente com o tempo e com a consciência das vantagens derivadas da especialização funcional na sociedade respectiva.

A História mostra que normalmente essa relação começa por ser imposta (à força, física e ou ideológica) por uma das partes sobre a outra, embora esta beneficie de algum modo dessa relação (primariamente o direito à vida e “protecção”). A isso não é estranho (aliás, é-lhe complementar) o desarmamento dos súbditos e as restrições à liberdade (de informação, deslocamento, associação, etc.)
Ainda hoje a actuação das Máfias assegura “protecção” de modo muito semelhante e os Governos “promovem” a “protecção” (no emprego, na reforma, na saúde, contra os inimigos, etc.; às vezes até criando “inimigos” e “medos” imaginados).

A noção de Nação (como agrupamento bastante mais alargado de iguais – eventualmente, cidadãos) e a noção de direitos, universais, de igualdade entre os homens são conceitos muito recentes na história humana.
A escravatura não foi ainda totalmente abolida no Planeta e o século XX foi marcado por fortes combates anti racistas. Aliás, ainda hoje alguns desses conceitos de igualdade universal não são “aceites”, na prática, em todo o Planeta, sendo um bom exemplo as actuais guerras étnicas e os sistemas políticos ditatoriais. O dito “confronto” entre Civilizações está na ordem do dia.

Mas mesmo nas sociedades humanas aonde esses valores, ditos universais, são aceites; o “cabouco” biológico (mais propriamente bio – social) da Solidariedade (intra grupo) e o “cabouco” da Competição (inter grupo) continuam a operar activamente. A expressão “interesses Corporativos” exprime muito bem essas relações.

O conceito de solidariedade alargada a grandes comunidades humanas para além da Nação também se está ainda a construir. São exemplo as Nações Unidas, a União Europeia, etc.

Portanto desde a origem do homem histórico (até aonde é possível fazer-lhe a história) até aos nossos dias, o conceito e a prática da solidariedade e as formas e “normas” da competição evoluíram imenso. Contudo os caboucos biológicos estão lá e os interesses simbióticos de todos perante todos é cada vez maior e, felizmente, cada vez mais conscientes.

Sem dúvida que, no Ocidente, as Igrejas Cristãs tiveram um papel essencial (ou mesmo decisivo) no alargamento do conceito de solidariedade a grupos humanos cada vez mais vastos e etnicamente distintos ao considerar, nomeadamente, que todos os homens são filhos do mesmo Pai – Deus. De igual modo influenciaram a competição inter grupos e muitas das formas em que se foi estruturando.

As modernas sociedades democráticas são exemplos deste estádio último (sob o ponto de vista cronológico) de evolução dessas relações entre os homens.

sábado, outubro 16, 2004

O Sol anda à volta da Terra: como se pensa a realidade social.

De facto muito do conhecimento que se pensa deter da realidade social continua ao nível da interpretação do que se fazia, há muitos séculos atrás, em algumas outras áreas do conhecimento.

Não deixa de ser verdade que o “conhecimento” se inicia primariamente ao nível das sensações que nos são transmitidas pelos nossos sentidos. E sem dúvida que no caso vertente: o Sol anda em torno da Terra.
É essa a (ilusão da) informação que chega aos nossos sentidos e é essa a interpretação primária (no sentido de “primeira”) que fazemos dessa informação.

Isso não significa porém que o conhecimento primário não seja suficiente para “satisfazer” grande parte das necessidades “diárias” das sociedades humanas.
Durante milénios o homem viveu só com esse saber primário e ainda hoje a maioria das pessoas de grande parte do planeta só detém este tipo de conhecimento.
E apesar dos esforços realizados ao longo nos últimos anos o nível de conhecimentos relativos às áreas sociais continua muito próximo da do saber primário.

Tal estado de coisas não é de admirar uma vez que o conhecimento do “social” lida com Sistemas Complexos Adaptativos, nos quais dificilmente se conseguem aplicar os modelos de análise das ciências exactas. Nomeadamente as relações de causa – efeito não só envolvem normalmente muitas variáveis, difíceis ou impossíveis de isolar, umas das outras como os efeitos retroagem sobre as causas.

Sem dúvida que as ciências sociais há muito que lidam com esta dificuldade e têm procurado recorrer a métodos que proporcionem alguma abordagem que lhes permita entender o que está para lá da “descrição” dos “factos” e tentem “isolar” o observador do objecto de observação.

Contudo o “facto” de se saber que se lida com Sistemas Complexos Adaptativos deveria ser suficiente para levar a uma atitude suficientemente cuidada quando se reflecte sobre a realidade social, qualquer que ela seja, porque a probabilidade de se ver “o Sol girar em torno da Terra” é com certeza aí muitíssimo elevado.

Quando o nível de comentários dos “especialistas” das respectivas áreas do conhecimento é idêntico ao do “homem da rua”, quando os problemas sociais repetitivamente descritos e “resolvidos” persistem em manter-se é quase certo que estamos a ver “o Sol girar em torno da Terra”.
E quando o cidadão, por ser “eleito” ou “por ser o que mais se faz ouvir”, passa a ser especialista e a ditar as “regras”, então seguramente “o Sol gira em torno da Terra” e a ciência deixou de o ser.

E seguramente o Sol girará para iluminar mais uns que outros.

Mas isso não é mais do que um dos aspectos a ter em atenção no Método quando se estuda e procura interpretar este Sistemas Complexo Adaptativo que é a Sociedade Humana.

domingo, outubro 10, 2004