quinta-feira, janeiro 27, 2005

BLOQUEIO E INCENTIVO À CIDADANIA: Parte IV - Portugal


Até aqui procurei centrar-me, em grandes traços, na evolução histórica do conceito de cidadania e do seu exercício (ou não exercício), mais ou menos alargado às respectivas sociedades.
Para tal tive de “simplificar” e “uniformizar “ realidades históricas que são muitíssimo mais complexas e diferenciáveis, aonde inclusive, os agentes dinâmicos da transformação social são múltiplos e sobre - determinam-se (interactuando activamente uns sobre os outros), eventualmente até operando de forma contraditória.

A escolha da cidadania como fio condutor desta reflexão não foi, contudo, por se tratar de apenas mais uma componente da Democracia ou de mais um dos agentes dinamizadores do social.
A cidadania e o seu exercício (ou não exercício), não só constitui o pilar essencial da Democracia, como constituiu (e continua a constituir) um dos pilares em que se baseou e se estruturou a evolução das sociedades humanas no seu caminho para a Civilização, ou seja, para a sua crescente complexificação (especialização e inter dependência, culturais).
Ou seja, o meu debruçar sobre a cidadania, em si, e seu exercício (ou não exercício) não exclui a reflexão sobre os, múltiplos, outros aspectos do funcionamento das organizações humanas nem os pretende minorar.

Continuando pois.
Como vimos, as condições iniciais e os percursos seguidos nos vários países para se chegar ao que denominam de democracia e de cidadania, não são os mesmos.
Seria pois invulgar que se estivesse a falar da mesma democracia e da mesma cidadania em todos esses países, uma vez que, sendo as sociedades humanas sistemas complexos adaptativos, as condições iniciais (história e cultura) e o percurso seguido desenvolvem, necessariamente, simbioses societárias especificas a cada país.

Para além das diferenças relativas ao exercício da cidadania alargada (associada à capacidade efectiva de iniciativa socialmente significativa, independente do estado), há aspectos do exercício da cidadania que são, esses sim, considerados mais comuns a todos os países “ditos” democráticos.

Na generalidade dos países democráticos desenvolvidos, o conceito de cidadão está associado não só à participação de cada um no poder de estado através dos seus directos representantes (portanto, livremente eleitos) como também ao direito a ser-se adulto (capacidade de responder integralmente por si) e ser-se igual aos demais em direitos e deveres, nomeadamente perante a Lei.
Também, na generalidade dos países democráticos, há valores razoavelmente bem implementados, pelo menos formalmente, como as liberdades de expressão, de associação, etc.

Contudo, olhando mais detidamente os sistemas políticos e o respectivo exercício (ou não exercício) da cidadania, mesmo naquilo que deveria de ser comum entre eles, facilmente se apercebe que há sistemas que induzem cidadanias verdadeiramente menores que outros.

Vamos pois tentar aprofundar mais sobre alguns desses aspectos relativos à cidadania, agora, mais no quadro do seu exercício (ou não exercício).

Apesar das maiores ou menores diferenças, as sociedades democráticas pretendem ser (pelo menos formalmente) sociedades de cidadãos; cidadãos esses que constituem a essência (o centro) dessas sociedades e que, como tal, sejam o factor de desenvolvimento de si próprios e da sociedade aonde estão integrados.
Pretende-se pois que os cidadãos (e a sociedade civil que criam) sejam os agentes activos e que não seja, apenas, o estado a sê-lo. Mesmo quando a iniciativa é do estado, deve sê-la como representando a vontade soberana dos cidadãos.
As próprias elites governantes só o são (como elites politicas e governantes), enquanto representantes dos cidadãos e enquanto estes as acharem capazes para as manter nos lugares para que foram eleitas ou designadas. O predomínio (centralismo) do estado deve pois ceder de algum modo à cidadania, e o controlo e a criação de contra poderes limitativos do “abuso” daquele, assume importância relevante nas democracias maduras.

Mas o cidadão, agente activo primordial da sociedade, só o poderá ser, efectivamente, se tiver capacidade real de assumir esse papel. E isso só ocorre se tiver não só os necessários direitos, inclusive de liberdade e de participação social, mas também os meios de os exercer.

Ora o direito à cidadania começa, desde logo, pela necessidade de pôr fim à causa primeira (enquanto histórica) que a coarctou (a cidadania), ou seja, o direito a não ser explorado e espoliado pelo estado (pelas elites que o controlam).
Independentemente de quaisquer questões éticas, hoje, as sociedades humanas têm instrumentos de evolução societária que não só, já não necessitam de se socorrer dessa (tradicional) exploração como, inclusive, a tornam, agora, nefasta à eficácia do seu desenvolvimento.

A contribuição do cidadão para o estado deve, pois, resultar do próprio exercício da cidadania, ou seja, da capacidade efectiva de participar na escolha de quem define e aprova as leis, na escolha de quem as executa e deve, também, deter os necessários meios para assegurar a respectiva fiscalização e controlo e, a capacidade de sancionar devidamente os desvios que ocorram.
Deste modo, se o carácter e qualidade parlamentar e executiva são essenciais à democracia não é menos importante o sistema judicial e demais instituições de fiscalização, controlo e responsabilização.

Em muitas situações de “democracia”, estes direitos podem não existir de facto, na medida em que a espoliação do cidadão pode, efectivamente, continuar a existir sob outras “roupagens”. Assim sendo, a capacidade do cidadão agir sobre a sociedade, pode ser severamente punida, inclusive pela falta de liberdade e independência provocada pelo seu “empobrecimento forçado”.

Não há liberdade nem possibilidade de exercer a cidadania, se a riqueza criada por cada um, for maioritariamente parar às mãos de um estado que não se tem capacidade de controlar e de se responsabilizar, mesmo se esse estado for, formalmente, eleito pelos cidadãos.

O risco (consciente ou inconsciente) mais imediato à cidadania, para as velhas e novas Nações, continua a ser, sem dúvida, as novas roupagens que a forte “tradição” de espoliação pode assumir.

As democracias não estão incólumes a isso, embora admita que o sejam menos que as não - democracias.
Grande parte das recentes democracias de África, América Latina e Ásia e até, de algumas, na Europa são, infelizmente, um bom exemplo disso.
Contudo, entre essas “democracias” e as democracias – referência, há muitas outras democracias em que não é tão evidente o que aí ocorre. Por exemplo: Portugal.

Como dissemos, não estamos, de facto, perante uma Democracia quando a maior parte da riqueza produzida pela sociedade civil (os cidadãos) flúi para os cofres do estado de tal modo que os cidadãos são mantidos num nível perto da pobreza por força dos elevadíssimos impostos que têm de pagar e quando o estado não é participado, controlado (e responsabilizado), efectivamente, pelos cidadãos (inclusive relativamente à forma como decide redistribuir a riqueza nacional, aí concentrada).

Os impostos ascendem, em Portugal, a cerca de 70% do rendimento médio do cidadão – pagador de impostos, ao longo de toda a sua vida.
Se este valor já é elevadíssimo, ele torna-se uma enormidade porque se trata de um país de rendimentos reais médios baixos, aonde cerca de 20% da população ainda vive abaixo do limiar da pobreza.
Essa taxa de extracção da riqueza nacional torna-se, mesmo, “indecorosa” quando as suas elites políticas e funcionários públicos superiores auferem salários e benesses das mais altas da Europa (e, ainda, acham que ganham pouco e é desmotivante ser “servidor” do estado!).

Em virtude dos mecanismos de controlo existentes (ou falta deles), a sociedade civil portuguesa não consegue assegurar um controlo efectivo sobre as leis aprovadas e sua execução, nomeadamente não controla a fixação dessas elevadíssimas taxas de extracção da riqueza criada pelos cidadãos (impostos) e muito menos a forma de redistribuição da riqueza nacional concentrada, por este processo, nas mãos do estado.

As causas são múltiplas. A excessiva centralização governativa e administrativa, associada a um sistema judicial ineficaz e, até, certo ponto, dependente do executivo, poderão, genericamente, sintetizá-los.

Os membros do parlamento dependem mais do respectivo partido e do respectivo Chefe do que dos cidadãos que, apesar de os elegerem, não têm de responder perante si (aliás, nem os conhecem!).
De facto, os deputados dependem directamente do seu Chefe, que os escolhe e coloca em lugares elegíveis nas listas eleitorais. Se a isso se acrescentar o direito “à disciplina de voto” que obriga os parlamentares a votar no que o seu Chefe indicar, então temos formado o quadro da sua total dependência a este.
Como é natural, neste quadro, o executivo não é controlado por ninguém pois o parlamento, que tem esse papel, não o consegue assumir. Por exemplo, as comissões de inquérito parlamentares nunca, na história da “democracia” portuguesa, assumiram conclusões contra o executivo.
Os Tribunais só excepcionalmente são chamados a colocar “tento” no executivo (quando o podem!). O que não se passa, por exemplo, com o Tribunal de Contas, numa matéria de suma importância para a cidadania: o uso, correctamente legal, do seu dinheiro (já não se fala de como se define a sua redistribuição e a que interesses serve).

Teoricamente, a Soberania (centrada no executivo) só é controlada pelos cidadãos na medida que podem ou não reconduzir o partido no poder, a cada quatro anos.
Evidentemente que este controlo é necessariamente débil e quando os “membros” dos partidos maioritários se unem ou acordam entre si em interesses comuns, acabou o (pouco) controlo dos cidadãos.
Como muitos gostam de apregoar, a alternância de poder, em si, não é Democracia como também não o é o direito ao protesto e à indignação, se com isso não se puder efectivamente mudar o estado das “coisas”, nomeadamente de quem exerce efectivamente a Soberania e se não se puder responsabilizá-los.

Ou seja, em Portugal, o parlamento e o executivo são extensões do mesmo poder: o chefe do partido que ganhou as eleições.
Não são extensões do mesmo poder enquanto doutrina, conceitos, princípios e programas (que aliás os portugueses não conhecem nem os chefes políticos se dignam publicitar, se os têm!). São extensões do mesmo poder enquanto pessoa, chefe do partido.
Em conclusão, o parlamento e o executivo não são órgãos de poder distintos, enquanto com papéis que podem, efectivamente, assumir de forma independente um do outro e responder, por quem os elege, de forma directa e independente um do outro.

Essa é, pois, mais uma das “componentes” que em nada contribui para o exercício da cidadania em Portugal.

O Presidente da República, embora eleito directamente pelos cidadãos, apenas tem um papel “presencial”, um pouco à semelhança dos monarcas, nas monarquias constitucionais.
Um papel, que na sua concepção constitucional, poderia, com certeza, ser assumido por um Tribunal Supremo, inclusive de forma, pelo menos, tão competente e tão eficaz (e mais barata para o erário público).

O sistema judicial é outra componente. O sistema judicial português não é transparente e é profundamente ineficaz. Dele não direi mais do que o quanto fica “aterrorizado” qualquer cidadão português com o que os seus próprios representantes (da justiça) dizem e escrevem a seu respeito.
Não penso que a questão esteja em melhorar o sistema existente, já com o maior número de juízes per capita da Europa e o maior número de processos por julgar (numa sociedade que se diz a mais pacífica da Europa!). É essencial pensar um novo sistema.

O poder autárquico é outra componente.
O seu papel é essencial para o fomento à cidadania e seu exercício (ou não exercício) e, não só, por estar mais perto do cidadão, mas porque a descentralização administrativa é, frequentemente, mais significativa e importante para o exercício da cidadania que uma maior ou menor centralização governativa.
Contudo não é o que se passa em Portugal. O poder autárquico exerce-se por normas que o torna intrinsecamente incontrolável e, praticamente, irresponsável perante tudo e todos.
Por exemplo, e é só mesmo um pequeno exemplo, é constrangedor ler, ouvir (e ver), através de todos os órgãos de comunicação social e durante anos a fio, sobre os “horrores” que o poder autárquico pratica com a urbanização das cidades e vilas, mas ninguém consegue por cobro a isso!

De que cidadania e de que “democracia” se está pois a falar, como existente em Portugal?

Mas, independentemente deste sistema político, de facto, o que se passa é que o cidadão português, não tem, em si, poder para mudar nada (eventualmente terá algum poder para imigrar!).
Mas que poder e independência pode ter uma cidadão (e a sociedade civil) a quem lhe é extraída a maior parte da riqueza que cria?
Qual o exercício de cidadania que se pode praticar no País, quando se entrega a este estado 70% da riqueza criada pelos cidadãos e estes são empurrados, por força disso, para uma pobreza forçada e para uma crescente incapacidade (efectiva) de intervenção social (para já não falar da sua quase total incapacidade para assumir iniciativas sociais significativas)?

O cidadão (e a sociedade civil), ao ser mantido numa pobreza relativa por força dos impostos (e não pelo seu rendimento real), é forçosamente conduzido, directa ou indirectamente, à subsídio - dependência do estado.

Mas o cidadão não fica só refém da subsídio - dependência. A essa subsidio - dependência junta-se a forte dependência ao poder discricionário do estado quer devido à excessiva centralização governativa como à excessiva centralização administrativa. Essa dependência ao excessivo poder discricionário do estado é agravada pela pobreza do cidadão (e da sociedade civil) e pela consequente incapacidade de recurso, frequentemente contornada com uma atitude de ainda maior subserviência àqueles poderes ou pela corrupção.
[E por favor, não se tome os cidadãos portugueses por imbecis, porque descentralização, governativa e administrativa, não se faz distribuindo ministérios e secretarias de estado pelo país.]

O cidadão e a correspondente sociedade civil não têm outro caminho que a subsídio dependência absoluta (ou a imigração).
Não se trata, pois, de subsidio dependência em sentido estrito do termo, mas no seu sentido lato. O estado e o poder autárquico não são só os grandes empregadores, compradores e distribuidores de subsídios de todo o tipo. A forte centralização governativa e administrativa e a correspondente falta de controlo e responsabilização dos seus actos, transforma as “autoridades” em autênticos (pequenos e grandes) ditadores devido ao seu fortíssimo poder discricionário, nem contra - balançado para se evitar que caíam no “abuso” e no arbítrio.

Não é pois surpresa que os cidadãos e a sociedade civil (inclusive as actividades empresarias “privadas”) deixem de poder ter independência e como tal deixem de poder tomar iniciativa livre, independente e significativa para o exercício da cidadania. “Todos” têm de esperar a intervenção do estado para resolver “tudo”.

Também uma das consequências mais dramáticas do empobrecimento (pobreza provocada) dos cidadãos pelos impostos é a sua capacidade, forçadamente limitada, de recurso, nomeadamente ao sistema judicial.
Se, aos “sem rendimentos”, o estado assegura apoio jurídico gratuito, a larga maioria da população tem de o pagar. Como essa população é empobrecida não lhe sobram rendimentos suficientes para pagar a advogados e demais custas judiciais e, muito menos, se os processos se arrastam por longos anos sem julgamento. Ou seja, a maior parte da população não pode, de facto, ter acesso ao sistema judicial para se defender; independentemente da sua eficácia, o que constitui uma outra questão.

O por si só, “pensar-se” que se vive em Democracia e que se é Cidadão, já constitui uma óptima roupagem para o encobrimento de eventual exploração e espoliação dos cidadãos. Por isso muitos ditadores já se dão ao trabalho de promover “eleições” e deste modo legitimar o seu poder e outras coisas….

Mas a justificação mais presente (e aceite) para a prática de elevados impostos e consequente concentração de grande parte da riqueza nacional, de origem autóctone, nas mãos do estado é a solidariedade social que o estado deve assegurar aos cidadãos.
Ou seja, conscientemente, o cidadão aceita abdicar de parte da sua liberdade e independência em nome não só de uma segurança pessoal colectivamente assegurada como também em nome da inter ajuda societária entre os seus membros.

Mas, pelo menos no caso português, essa solidariedade social está a ter um custo elevadíssimo e não só financeiro (porque está a corroer grande parte da riqueza nacional em aplicações com índices elevadíssimos de ineficácia) mas também está a bloquear, ou mesmo impedir, o exercício da cidadania, como vimos acima.

Contudo, porque não questionar sobre a solidariedade social e o papel do estado e dos cidadãos, como justificativos das elevadíssimas taxas de extracção da riqueza nacional das mãos de quem a cria?

Será que os cidadãos (e a sociedade civil) não são capazes de desenvolver e estruturar formas de solidariedade social independentes e tão eficazes como o estado?
Será que o cidadão é mais egoísta e menos competente a fazer solidariedade social que o estado?
Será que o cidadão é menos pessoa de “bem” que o estado?
Será que a qualidade média de vida dos países anglo-saxónicos é significativamente inferior à de Portugal?
[Aliás, os Países Europeus do Continente, que se orgulham tanto da sua ampla solidariedade social (incomparavelmente mais estruturante e eficaz que em Portugal, porque enquadrada em sistemas políticos efectivamente diferentes) estão a reequacioná-la com elevada urgência e a transferi-la, em parte, para a iniciativa dos cidadãos.]
E, será que é possível fiscalizar, controlar e responsabilizar o comportamento de um estado centralizador (e quem, por sua vez, o controla) com a mesma facilidade que o do cidadão?

Bem, cidadãos (e sociedade civil) empobrecidos e subsídio dependentes, não podem, de certeza, fazer solidariedade social e muito menos controlar e responsabilizar o estado (e quem o controla)!

Comparado com outros países, nomeadamente com os países anglo saxónicos, aonde o exercício da cidadania assume particular relevância; Portugal é um exemplo interessante de analisar mesmo em áreas de iniciativa com forte cunho privado e até pessoal, ou seja, em áreas tipicamente de iniciativa da sociedade civil.

A nível cultural, por exemplo, enquanto que naquelas sociedades muitas instituições e iniciativas culturais são maioritariamente iniciativa (independente) da sociedade civil, em Portugal, grande parte dessas iniciativas, são (têm de ser) do estado ou por ele suportados.

Até as ONG´s e grande parte das Fundações, privadas, têm de ser sustentadas a quase 100% pelos subsídios do estado (Não! Sustentados sim, pela riqueza que foi retirada aos cidadãos através dos impostos).
É provável que o conceito de “privado”, em Portugal, não seja, de facto, o mesmo que o utilizado em muitos outros países europeus!
Claro que essa intervenção do estado pode ter, com certeza, vantagens: por exemplo, o cinema português ganha imensos prémios nacionais e internacionais, mas os cidadãos não vão ver os filmes nacionais! Como os agentes culturais dependem do estado para produzir e não dos cidadãos, continuarão com certeza a ganhar prémios, mas a não ter a audiência dos cidadãos (com certeza, a cultura dos cidadãos não é a dos realizadores nem de quem decide a atribuição da subvenção; mas o dinheiro da subvenção, este sim, é o do cidadãos!). Talvez o exercício da cidadania, no tipo de Democracia à portuguesa, passe a ser “obrigar” os cidadãos a ver os filmes nacionais (aliás, a “tradição” ainda deve andar por aí)!

Qualquer recolha de fundos junto dos portugueses resulta em escassas contribuições a não ser eventualmente a de bens alimentares (e grandes tragédias – fala o grande coração dos portugueses) talvez porque continuem muito sensíveis à fome, a que ainda importante parte da população portuguesa não está longe e pode voltar a cair!
Mas como é possível “recolher” para a solidariedade social, se parte significativa da população portuguesa vive perto do limiar da pobreza ou abaixo desta? Se o pouco com que contribuir pode resultar num sacrifício significativo? E, não é porque não trabalhe muito ou ganhe pouco. É porque o estado lhe extrai 70% dos seus rendimentos!

A “generalizada” solidariedade social, que o estado português diz ter de assumir, nomeadamente executando grande parte das iniciativas sociais significativa, de origem autóctone, não significa necessariamente que Portugal tenha, efectivamente, um estado previdência.
Por tudo o que se tem concluído sobre o funcionamento do sistema político e administrativo do país e do tipo de exercício de cidadania reservado aos seus cidadãos, parece que tal é justificação às elites políticas portuguesas para pensarem que constituem a escol mais esclarecida do país e portanto com direito (!) de o governar (e ditar valores), sem peias, fiscalização e controlo, ou, então, não entenderam o que é a cidadania em Democracia. Ou, mais grave, estão a bloqueá-la (à cidadania) conscientemente para defender os seus privilégios de acesso e usufruto da riqueza nacional concentrada no estado pelos impostos e redistribuída por si, nomeadamente em salários, subsídios e encomendas e, em processos, que, por não serem controláveis pelos cidadãos, não são transparentes.

Como é natural, como as “coisas” se processam, tem profundas consequências na simbiose societária que se desenvolve em Portugal.
O comportamento do estado (e suas elites) não bloqueia só o exercício da cidadania, impede o desenvolvimento desta.
Ou seja, um País ou desenvolve uma simbiose societária correcta (enquanto sustentada no exercício da cidadania) ou desenvolve uma simbiose societária incorrecta (enquanto sustentada no não – exercício da cidadania). Mas a simbiose, essa desenvolve-se sempre.

Consequentemente, como é possível pedir aos “cidadãos” portugueses para terem iniciativa e serem empreendedores se o estado se estruturou para lhes retirar a riqueza, a redistribuir em processos não controlados pelos ditos “cidadãos” e tratados como não – adultos, nomeadamente, porque incapaz de gerir da melhor forma a riqueza que criam, para seu próprio bem e da sociedade aonde estão integrados?
Em Portugal, só as iniciativas não autóctones estão protegidas do estado ou, pelo contrário, até dele recebem privilégios (inclusive, excepções legais) não estendíveis às iniciativas autóctones.
O sinal que o estado dá aos cidadãos, é que só ele, estado, é que sabe investir, criar e assegurar empregos, garantir saúde, reformas de velhice, educação, etc. Só o estado é que é honesto e capaz de redistribuir, nomeadamente para fazer crescer o país e melhorar as condições de vida de todos!

Mas de facto, alguém pode não acreditar nessa insofismável verdade tão assumida pelo estado português?
Basta olhar á nossa volta para se desmoronar qualquer dúvida a esse respeito. Basta olhar para a maravilhosa e eficiente educação que é praticada nas nossas escolas (das mais caras de Europa, mas é o preço a pagar!), a belíssima e eficientíssima saúde pública que temos (das mais caras de Europa, mas é o preço a pagar!), dos eficientíssimos transportes públicos, das boas reformas que auferem os nossos reformados e até dos bons salários (e outras benesses, não menos importantes) dos políticos e funcionalismo público superiores, agora ainda mais altos nos recém “inventados” institutos públicos (sempre em crescente número, para maior eficiência dos serviços públicos – tão claramente patente a todos! - e felicidade de todos).
O estado está, incansavelmente a trabalhar para o bem dos cidadãos! O contínuo aumento das despesas do estado - isso não é problema – os cidadãos pagam: exporta-se mais (porque aumentar o consumo deles não dá jeito!) e (ou) aumenta-se os impostos!

Não se pode esquecer que as sociedades humanas são sistemas complexos adaptativos. A chave e a fechadura auto - constroem-se uma à outra. Se o estado se encarrega de tudo (é omnipresente e omnipotente relativamente à sociedade) não se pode querer que os cidadãos (e a sociedade civil) tenham iniciativa, sejam empreendedores, arrisquem, sejam inovadores, etc.
Como pedir-lhes que sejam, individual e colectivamente, competitivos (inclusive para bem da respectiva sociedade como um todo) se todos os sinais do estado são de menorização da cidadania e de efectiva espoliação (e infelizmente da má aplicação) da riqueza que estes criam.

De facto, neste tipo de Sistema, a competição acabou por se tornar só vantajosa (e por isso o país se estrutura em conformidade) para a “conquista” do estado e da administração pública e do direito de acesso privilegiado à redistribuição (legal ou para - legal) da riqueza nacional e à segurança que isso acarreta.

Em conclusão, sociedades deste tipo, até se podem denominar de democráticas e apelidar os seus habitantes de cidadãos, mas de facto não são nem uma coisa nem outra. Talvez o sejam sim (!): democracias menores e cidadanias menores!?

As elites das democracias e cidadanias menores ainda não compreenderam que estão num mundo diferente.
Diferente porque agora a competição é planetária, global e os seus efeitos fazem-se sentir, cada vez mais, a curto prazo. E ela já é liderada por países de cidadania plena, cuja capacidade de adaptação, de inovação, de criação de riqueza e de cuja eficiente aplicação é maior que de quaisquer outros sistemas políticos (inclusive das quase - democracias), em virtude precisamente da capacidade que se “soltou” (libertou) ao permitir que muitos milhões de pessoas passassem a poder “decidir” e a “tomar” iniciativa; em fim a poderem ser senhores de si mesmo e com isso trazer valor acrescido às respectivas sociedades, inclusive a uma solidariedade que é intrinsecamente estruturante ao exercício da própria cidadania e do seu desenvolvimento.

Por outro lado, considerando que o cidadão e a sociedade civil se tornaram o centro do poder, isso proporcionou a esses sistemas uma eficiência global de tal modo elevada que essas sociedades deixaram de ter necessidade de líderes políticos excepcionalmente competentes (o sebastianismo - ainda tão necessários em muitos países) pois quem tem de ser competente é a sociedade em si e é essa competência que extravasa para o estado e não o contrário.
Ou seja, nos estados centralizadores é probabilisticamente muito maior os riscos à ineficiência e à incompetência (e corrupção), governativa e administrativa, do que nos estados descentralizados na respectiva cidadania e sociedade civil.

A manter-se essa vantagem, as elites das “democracias menores” estarão a cavar a sua própria “sepultura” e, pior ainda, a cavar a sepultura dos seus povos, pelo menos a longo prazo.

terça-feira, janeiro 18, 2005

BLOQUEIO E INCENTIVO À CIDADANIA: Parte III - A Cidadania - nova forma de fazer Civilização


Apesar da Inglaterra ter sido a percursora do moderno sistema democrático, foi nos EUA que ele se desenvolveu e tomou forma.

A origem da formação dos EUA e o “momento” da sua independência proporcionaram condições excelentes (e eventualmente únicas) para tal ter sucedido.

Os EUA formaram-se como uma Nação maioritariamente constituída de imigrantes que fugiam, em grande parte e em última instância, aos sistemas políticos europeus, nomeadamente ao relacionamento desigual e seus efeitos, nomeadamente à intolerância religiosa, à desigualdade e à pobreza forçada.

Como tal esses imigrantes estavam abertos a promover a criação de um estado diferente daqueles de onde fugiam. A isso associou-se a divulgação e a atracção dos ideais da Revolução Francesa (de que saliento a declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789), que ocorreu no período em que lutavam pela independência dos EUA.

Nesta nova terra, as aspirações desses imigrantes não tiveram de enfrentar a oposição de outras tradições (e das correspondentes relações simbióticas) como, por exemplo, aconteceu na Europa com a Revolução Francesa e que conduziu ao seu esmagamento (pelo menos formal).

Sem dúvida que os ideais da Revolução Francesa e mesmo a tradição administrativa Inglesa não foram transplantados para a nova terra sem alterações. Terão sido, com certeza, adaptados não só às aspirações desses imigrantes mas também ao meio social aí desenvolvido (e, mesmo, ao meio físico existente).

Por exemplo, o direito à liberdade e o direito à diferença, assumiram uma especial importância e novo significado, pois a intolerância religiosa tornara-se inadmissível e esses conceitos tinha de acomodar a multiplicidade de identidades étnico - culturais que constituíam o mosaico humana da nova Nação.

A Revolução Francesa associava liberdade, igualdade e fraternidade. No novo país, a liberdade é associada ao direito à diferença e, a liberdade e o direito à diferença são associados à igualdade perante a lei.

Outra diferença significativa é que o estado deixou de ser o Centro da Nação, enquanto entidade centralizadora de grande parte da riqueza nacional e principal entidade de “iniciativa social significativa”. O centro dinâmico (motor) da Nação (enquanto detentor de riqueza e iniciativa social significativa) passou a ser os cidadãos e a respectiva sociedade civil (muito mais, inclusive, do que já era em Inglaterra).

É que, os imigrantes americanos, vinham marcados (negativamente) pelo carácter dos estados centralizadores europeus nos quais a sociedade civil se via conduzida, genericamente, à “pobreza” pela espoliação de parte significativa da riqueza por si criada. Contudo a nova terra estava também marcada (positivamente) pela tradição administrativa Inglesa que lhes apontava não só uma via possível mas uma via que funcionava: o estado limitado e o direito a alguma cidadania (pré cidadania).
Ou seja, o “ajustamento” a uma concepção e exercício de cidadania, mais ampla (com mais responsabilidades) e mais alargada (envolvendo mais camadas sociais), caía como uma luva às aspirações desses imigrantes e às exigências da nova terra a “desbravar”.

Essa nova sociedade foi, pois, tentada a minorar o papel e importância do seu estado.
A sede da nova Nação foi colocada, mesmo, numa pequena cidade do País e foi dada particular atenção à limitação do seu poder e ao seu controlo, inclusive pela responsabilização dos representantes eleitos directamente perante os respectivos eleitores.

De facto, nos EUA, o Centro da Nação passou a ser o exercício da Cidadania, o Cidadão e a Sociedade Civil, a quem o respectivo estado deveria servir.

Ou seja, este novo país criou e assumiu, de facto, um novo conceito para a relação que deveria passar a ocorrer entre o estado e a sociedade civil.
Esse novo conceito representava, efectivamente, uma relação totalmente oposta à correspondente tradição existente na Europa, com excepção, até certo ponto, da Inglaterra.

Dessas diferenças saiu, de facto, não só um novo conceito de cidadania mas também, sem dúvida, o conceito (moderno) de Democracia.

Naturalmente, isso desenvolveu valores e desenvolveu uma simbiose societária específica à organização social aí assumida.

Por exemplo, no novo país, um dos indicadores mais significativo na definição do estatuto social de cada um, passou a ser (e é) a riqueza possuída, porque ela constitui, de certo modo, a “tradução” social da respectiva capacidade de trabalho e de realização, e da valorização (quase divina!) que a sociedade atribui a essa capacidade.
O self-made-man passou a ser o herói nacional do novo País e já não a origem nobre, como na Europa, ou seja a tradicional “ligação” ao direito herdado (quase divino!) do exercício do poder do estado.
No novo país, o exercício da cidadania, enquanto fonte de trabalho e de capacidade de iniciativa”, nomeadamente, de “iniciativas socialmente significativas”, passou a ser um valor social primordial e o “centro motor” da nova sociedade.

Se a diferença da simbiose societária desenvolvida na Inglaterra, ao longo de séculos, já era (e é) bastante diferente da simbiose societária Continental, muitíssimo maior é a diferença com a desenvolvida nos EUA e com os outros recém formados países anglo-saxónicos (Canada, Austrália, Nova Zelândia, etc.).

Com o risco de poder parecer (e ser) demasiado “simplificador” e “generalizador” do que nos mostra a histórica universal (cheia de particularismos e diversidade, portanto avessos à uniformização) parece-me que os EUA inauguram, de facto, uma nova forma de fazer Civilização, ou seja, de promover e desenvolver a evolução das sociedades humanas de forma diferente da que até aí se fazia (o “poder “e a “iniciativa” concentrados no estado).

Aliás também com o surgimento do socialismo surgiu uma outra forma de fazer Civilização da existente, então, na Europa.
Contudo essa diferença acabou por se traduzir, em essência, na estatização total do país e na retirada total do direito de exercício de cidadania aos seus habitantes com excepção das elites politicas, que se diziam actuar em nome destes. O estado passou a concentrar toda a riqueza nacional e a fazer a sua respectiva redistribuir segundo as suas prioridades. Ou seja, passou a ser a única entidade capaz de tomar “iniciativa”.
De facto, a experiência socialista, não constituiu uma nova forma de fazer Civilização pois acabou por ser repetida, mais uma vez, a velha fórmula, ou seja, centrar o poder (e a iniciativa) da nação nas mãos do estado (e da elite que o controla).

É importante salientar que a nova forma americana de fazer Civilização também só se terá tornado possível porque os mecanismos recentemente disponíveis pelas sociedades humanas quer na criação de riqueza (com produtividade infinitamente maiores que as do passado) como para assegurar a concentração de excedentes (em sentido lato) necessário ao Investimento (indispensável ao desenvolvimento e há crescente especialização e interdependência, sociais) já não se limitam às velhas fórmulas: de rapina de outros povos e à exploração e espoliação dos respectivos povos pelas suas elites.
Ou seja, fazer Civilização, já não está dependente da existência de um estado centralizador, tome ele ou não, o “traje”, mais ou menos benigno, de estado – previdência, como aconteceu nos países socialistas, pelo menos sob o ponto de vista conceptual e formal.

A nova forma Civilizacional, desenvolvido nos EUA, é compatível com o novo conceito de cidadania alargada, aí desenvolvido.
Os cidadãos (e correspondentes sociedades civis) podem agora participar activa e livremente, com vantagens pessoais e para a colectividade (e já não só das elites, especialmente as políticas e económicas a estas associados), no processo civilizacional através de novas (e eficazes) formas de concentração e repartição (consumo e investimento) do excedente que produzem, inclusive enquanto força de trabalho.

Ou seja, o que historicamente era só possível de realização através do estado centralizador passou a ser possível fazê-lo pelo exercício da (livre) cidadania de milhões de pessoas, dezenas e centenas de milhões de pessoas.
O deslocamento horizontal e vertical, na nova sociedade, tornou-se aberto e significativamente fluido.

O “centrar” a sociedade no cidadão em vez do estado, não significa que o estado se tenha tornado menos importante.
O seu carácter terá sem dúvida mudado, num processo que se iniciou em 1215, em Inglaterra, com a imposição da Magna Carta ao Soberano.
Diria mesmo que o papel do estado (embora diferente) será, pelo menos, muito mais complexo ao ter de garantir os direitos e deveres de milhões de cidadãos capazes de ser decisores independentes e com capacidade real de iniciativa socialmente significativa. É, sem dúvida mais complexo do que governar milhões de súbditos (ou pré cidadãos) incapazes de decidir por si porque não detêm capacidade de iniciativa uma vez que não lhes é permitido, efectivamente, possuir (significativa) riqueza própria e independência do estado (-pai) em virtude de elevados impostos e sistemas de redistribuição politicamente diferenciadores e pouco controlados por aqueles.

A nova forma civilizacional inaugurada pelos EUA e, hoje, relativamente bem implementada nos países anglo-saxónicos conduziu a Humanidade a uma verdadeira fase de transição na qual as tensões entre o velho e o novo se manifestam cada vez mais, em especial após o término da guerra-fria e com a crescente globalização.

Apesar da concepção de organização da sociedade americana ser oposta à da Europa, relativamente aos papéis do estado e da cidadania nas respectivas sociedades, pelo menos, quanto à “centralidade” daqueles na dinâmica social; parece-me que a Europa não reconhece claramente essa diferença.
Ou seja, parece-me que a Europa, ao não reconhecer essas diferenças não vê o como elas induzem diferença entre as respectivas democracias e inclusive as profundas consequências que daí provêm para os seus cidadãos e para as suas respectivas sociedades.

De facto na Europa (a generalização é abusiva por isso não se tome de forma rígida) o estado continua, em grande medida, a ser o centro da Nação enquanto que nos EUA o centro da Nação foi deslocado para o Cidadão e a Sociedade Civil (já o era, de forma acentuada, na Inglaterra).

Isso implica que, na generalidade, a democracia dos países europeus continuam a preservar uma relação simbiótica na qual o seu cidadão continua bastante dependente do respectivo estado, nomeadamente da iniciativa deste.
O cidadão europeu e a respectiva sociedade civil continuam fortemente dependentes da redistribuição (diferenciada, porque o é quase sempre) promovida pelo estado dos excedentes previamente retirados à sociedade civil por força de elevadíssimas taxas de extracção (impostos).
Ao proceder-se deste modo, o cidadão e a sociedade civil europeias, tornaram-se incapazes, por si sós (independentemente do estado), de tomar iniciativas socialmente significativas.
Na generalidade, desenvolveu-se na Europa Continental não só uma subsidio dependência “física” mas também psicológica e social, tendo-se desenvolvido uma simbiose societária conforme a praxis aí existente.

Nada garante que, mesmo a longo prazo, este novo, surgido nos EUA, substitua o velho; como a História nos mostra em inúmeros casos (por exemplo: a República cedeu lugar ao Império, em Roma, e em definitivo - até a sua queda).
Nem que, a longo prazo, o novo permaneça mais eficiente que o velho.
Nada garante mesmo que não se volte ao mesmo velho pois não só a tradição (cultura) é muito forte e marcou durante muitos séculos a relação entre as elites e ex - súbditos como também os poderes de manipulação e controlo da liberdade são hoje incomensuravelmente maiores.

Por outro lado, mesmo nos EUA, as tensões são crescentes.
O contínuo crescimento de imigrantes portadores de uma cultura simbiótica de subsidio dependência (em sentido lato), a crescente exigência interventora no exterior (provocada nomeadamente pelas guerras e terrorismo) e o desenvolvimento de politicas internas de igualização, semelhantes às da Europa, podem exigir um estado muito mais forte e centralizador, podem exigir o aumento significativo dos impostos e uma intervenção mais directa e ampla do estado em substituição do livre exercício da cidadania. Isso poderá conduzir não só à diminuição do poder dos cidadãos face ao estado como à diminuição do seu poder de influir de forma autónoma na sociedade americana.

Por outro lado, os EUA estão a desbravar novos caminhos. É cedo para se avaliar as consequências de uma democratização cada vez mais ampla e participativa na vida social e no estado, e as consequências das decisões de milhões de decisores independentes e com poder de iniciativa social significativa. Se muitas (consequências) têm trazido resultados positivos para a sociedade americana, e até para o mundo, muitas outras também constituem resultados negativos e desencorajantes.

Contudo, não se pode deixar de salientar, que também a Europa procura novos caminhos civilizacionais.
Após a segunda guerra mundial, a Europa tenta, de certo modo, fundir a sua tradição de estado centralizador com a de cidadania ampliada – como que uma “terceira via” entre a democracia à americana e o socialismo, desenvolvido por Marx e Engels e experimentado em vários países (e que tanto encantou e encanta muitos dos seus intelectuais, filósofos e políticos).

Aliás, porque mais perto ou idêntico à sua tradição e organização social – à sua simbiose societária; as elites e cidadãos europeus parecem entender (e aceitar) melhor o conceito de estado centralizado, agora melhorado com a “igualdade e fraternidade”, do que o conceito de estado (periférico) dos EUA.
E, sem dúvida, as velhas elites europeias (e as novas, suas herdeiras culturais) sentem-se mais confortáveis em garantir a preservação das suas (velhas) lideranças mesmo que seja na nova roupagem do estado previdência (estado – pai). Também, talvez, os seus concidadãos, formatados nesse status quo durante séculos, devam pensar poder vir a sentir-se “perdidos” se, de repente, tivessem de passar a decidir por si e passar a assumir iniciativas e responsabilidades até agora nas mãos do respectivo estado e elites que o controlam.

Contudo, o mundo é hoje muito mais “pequeno”, a competição tornou-se planetária, a globalização envolve todas as sociedades humanas, a informação circula cada vez mais e, mais que ontem, o nível de eficiência de cada país (estado e sociedade civil) tornou-se muitíssimo mais determinante do respectivo futuro, e já não só do longínquo mas do futuro a curto prazo.
A protecção das fronteiras é cada vez menos eficaz às respectivas elites políticas e a ineficiência não só se paga muito caro, como se paga, cada vez mais, a curtíssimo prazo. Ou seja, a ineficiência passou a castigar, quase imediatamente, quem a provoca ou quem está a ela sujeito enquanto que, no passado, os seus efeitos só se sentiriam, frequentemente, muitas gerações depois.

O exercício da cidadania (ainda hoje, dos mais audazes!) tornou-se bastante generalizável, pois os novos “países de imigração” não só são receptivos a dar-lhes a sua cidadania (plena) como chegam a promover activamente a imigração dos mais competentes ou dos que mais falta fazem às respectivas sociedades.
A competição já não é só a dos “produtos”. Ela extravasou (e é essencialmente) uma competição para a atracção dos “melhores”, e não por serem herdeiros de “nomes” mas por “saberem fazer” (trazerem competências ou ter capacidades de as adquirir).
Estes novos cidadãos procuram, muitas vezes, fugir às restrições e à espoliação impostas pelos respectivos estados de origem e procuram novas paragens aonde lhes é reconhecido o direito (e até o dever) de tomarem “iniciativa” e aonde, pelo menos, o respectivo estado lhes preste um serviço correspondente ao que têm de lhe pagar.

Ou seja, com a existência dos países de cidadania alargada, com a crescente facilidade de circulação de pessoas e capitais, com a crescente trans – nacionalidade incentivada por aqueles; cada vez menos, a protecção do estado – previdência constitui atractivo, a não ser para os menos audazes, os mais pobres (às vezes, à força) ou os menos informados.
Contudo, essa trans – nacionalidade crescente, é capaz de atrair, aos estados – previdência, novos cidadãos e suas “iniciativas” pois, frequentemente, essa trans – nacionalidade permite-lhes, por um lado, escapar às pesadas responsabilidades “sociais” impostas por estes estados e, por outro lado, conseguem beneficiar das vantagens (desigualmente repartidas) que estes podem proporcionar e até, muitas vezes, repartir com esses estados o risco do negócio.
Ou seja, os estados – previdência podem tornar-se, em si mesmos, um negócio para as iniciativas trans nacionais. Aliás, os seus cidadãos mais “avisados” aproveitam também essa oportunidade, para o que têm de dar aos seus capitais e iniciativas a trans nacionalidade que lhes permite, de igual modo, fugir às pesadas responsabilidades “sociais” que os estados lhes imporiam se não o fossem.
Como é natural, os cidadãos desses estados, que mais têm de suportar essa solidariedade dita “social”, são aqueles que mais têm dificuldade em furtar-se a isso, ou seja, os trabalhadores por conta de outrem ou as pequenas iniciativas empresariais.

Os estados previdência (democráticos) estão, pois, cada vez mais “gordos” (enquanto mais consumistas e menos eficazes no investimento) e, consequentemente, crescentemente ineficazes.
A solidariedade do estado, dita “social”, está a provocar a sua crescente auto fagocitose, mas continua a ser a justificação e desculpa para a continuação da excessiva concentração, em si, de grande parte da riqueza nacional criada pela respectiva sociedade civil e, da correspondente, concentração, em si, de grande parte da iniciativa social significativa, de origem autóctone.

A resposta a este problema, cuja consciência tem aumento por toda a Europa, não tem sido diminuir o papel do estado e, consequentemente, diminuir de forma significativa os respectivos gastos. Tem sido, transferir responsabilidades crescentes para a sociedade civil e os respectivos cidadãos, sem lhes diminuir, de forma correspondente, o peso dos impostos.
No fundo, o estado previdência pretende induzir a que os cidadãos (que não podem fugir aos impostos) trabalhem mais e melhor, para continuarem a pagar o mesmo nível de impostos ao estado (e assegurar as benesses de quem o controla e da solidariedade “social”) e ao mesmo tempo assumirem as novas responsabilidades financeiras relativas às responsabilidades que o estado lhes coloca, agora e de forma crescente, nas suas mãos.

Ou seja, parece-me que muitos estados europeus ainda não entenderam que eles próprios (estados) é que são o “problema” dos seus Países, nomeadamente da respectiva ineficiência (agora, mais transparente com a globalização) e não o facto dos seus cidadãos trabalharem mais ou menos e, melhor ou pior.

A não alteração profunda e “imediata” deste estado de coisas (taxa elevada de impostos e inexistência de cidadania ampliada, autóctone, capaz de iniciativa socialmente significativa) não me permite augurar nada de bom, quando à possibilidade de manutenção do actual nível de vida dos cidadãos europeus (Europa não anglo-saxónica, com excepção de países cuja riqueza é sustentada em bens ou serviços de alta produtividade – petróleo e, algumas, novas tecnologias, por exemplo) e consequentemente quanto à futura ocorrência de graves perturbações sociais.




sexta-feira, janeiro 14, 2005

BLOQUEIO E INCENTIVO À CIDADANIA: Parte II - Desenvolvimento e pré cidadania


Como vimos, a Civilização surge e desenvolve-se sustentada na relação desigual entre (elites associadas e detentoras do) estado e súbditos, na medida em que essa relação possibilitou não só a concentração e a extracção dos excedentes (bens, força de trabalho, etc.) disponíveis na sociedade como a sua redistribuição diferenciada com vista ao consumo e ao investimento necessários ao surgimento e desenvolvimento de novas especializações (culturais) que, por sua vez, conduziram a uma maior interdependência cultural no seio das respectivas sociedades (crescente alargamento e intensificação simbiótica na respectiva sociedade).

A História dá-nos múltiplos exemplos de como esse investimento (em sentido lato), com vista ao desenvolvimento, pôde ser realizado de forma central, pelo estado (e elites que o controlam), ou de forma “mais ou menos” descentralizada quando a sociedade civil tem a necessária “liberdade” e também é capaz de iniciativas “mais ou menos” significativas.
A expressão “mais ou menos”, acima utilizada, procura reflectir entre outros as limitações da sociedade civil em tomar iniciativas (em especial as socialmente significativas), pois estas dependem frequentemente da prévia concentração de excedentes e posterior redistribuição. A História mostra-nos que durante muitos séculos essas condições só se asseguraram com a imposição (pela força) do estado, ou seja, das elites que o detêm, controlam ou que se lhe associam.

São muitos os exemplos e especificidades de como os países se estruturaram relativamente ao exercício desse poder, isto é, de como impunham a organização da produção, concentração e da extracção da riqueza nacional e de como a redistribuíam. Consequentemente temos hoje múltiplos exemplos para estudo e o facto de podermos olhar para o “passado” permite-nos avaliar da maior ou menor eficácia das várias soluções então adoptadas.

Por exemplo, as elites e os povos das actuais democracias ocidentais percorreram um longo caminho para compreenderem as vantagens societárias do direito de todos os súbditos passarem a ser “cidadãos”. Isto é, para que a solidariedade entre iguais (as elites) se alargasse a todos os habitantes da Nação e fosse permitido aos cidadãos operar livremente e tomar iniciativa.

Contudo nas sociedades humana (sistemas complexos adaptativos) o fim depende não só das condições iniciais do sistema (a sua história e cultura – em sentido lato) mas também do percurso realizado para o atingir. E isso porque, sendo sistemas adaptativos, a evolução de uma qualquer simbiose societária traduz-se num ajustamento simbiótico continuamente auto - realizado ao longo do respectivo percurso.

Como consequência, por exemplo, considerar que basta todos os cidadãos “elegerem” os órgãos de soberania (fim alcançado) para se ascender à democracia e à cidadania constitui uma corruptela não só do conceito do que é democracia e do que é cidadania mas também da forma como estes conceitos são vividos nas sociedades (-referência) aonde eles tomaram as primeiras formas práticas e aonde mais se desenvolveram.
Basta olhar muitas das novas democracias africanas, asiáticas e da América Latina para ter disso consciência. Contudo se em algumas daquelas “democracias” é evidente a ausência de democracia, há democracias aonde não é tão evidente essa ausência e a falta correspondente de cidadania!

Apesar da Revolução Francesa e dos seus ideais marcarem um “momento” histórico fundamental na história humana, a Inglaterra é considerada a percursora do moderno sistema democrático (as formas republicanas grega, romana e italianas estavam ainda bastante afastadas da noção actual de cidadania das modernas sociedades ocidentais).
Como diz S.E. Finer em “História do Governo”: “Fora da Inglaterra, a noção de que os destinos do estado são decididos, pelo menos em última análise, pelos elementos politicamente significativos da sua população, isto é, de que ele pertence há nação e não ao governante, surge com muita clareza muito tardiamente; e quanto ao reconhecimento explícito de que a soberania reside na nação, teremos de esperar até à Revolução Francesa …”.

Na Inglaterra, já em 1215, os nobres ingleses impuseram ao rei a Magna Carta, documento destinado a impedir os abusos da autoridade e que ainda hoje são basilares no direito público inglês sobretudo no aspecto das garantias individuais (habeas corpus).

O sistema de poder na Inglaterra, com a “ajuda” de um sistema de justiça muito específico (pragmático, transparente e juridicamente auto-responsabilizante), foi “limitado” já no início do séc-XIII quando ainda hoje há países, ditos democráticos, que não dão aos seus cidadãos idênticas garantias (sete séculos depois).
A transferência de parte do poder do estado para o Parlamento (Câmara de Comuns) e a institucionalização de um sistema de poderes e contra poderes, a que não é de somenos importância salientar o seu exemplar sistema de justiçar (muito mais ligado à praxis que à doutrina), não só evitava “abusos” do poder do estado (inclusive do Monarca) como principalmente trouxe uma maior participação da sociedade civil e “libertou” (e incentivou) a iniciativa do cidadão (numa primeira fase, da nobreza) e facilitou a respectiva mobilidade horizontal e mesmo vertical.

Esse aumento de capacidade interventora da sociedade civil deu-lhe um crescente poder, experiência e sentido societário que se reflectiu, por efeito de feedback, por sua vez na restrição do poder do estado em impor-se abusivamente à respectiva sociedade civil

Ou seja, cedo na sua história, o estado Inglês não só foi “limitado” pela sociedade civil como esta teve possibilidade de desempenhar um peso significativo e crescente na responsabilidade da governação e desenvolvimento da respectiva sociedade.
Como consequência, por exemplo, na História Económica da Europa há múltiplos exemplos em como a sociedade civil Inglesa atingiu capacidade e toma iniciativas em áreas (como por exemplo: criação de Universidades, construção de estradas e caminhos de ferro) que, no Continente Europeu, são tipicamente de iniciativa estatal para não referir a sua contínua e intensa participação (independente do Estado) no ensino, cultura e solidariedade social.
Ou seja a “liberdade” para o exercício de uma já - cidadania (pré – cidadania), inclusive pela limitação do estado em lançar impostos, cedo permitiu à sociedade civil acumular património e poder que lhe proporcionou tomar o exercício de iniciativas que noutros locais só o estado dispunha e se abalançava a fazer. Isso favoreceu a criação de uma classe média inglesa (não subsidio dependente), desenvolveu-a e exercitou-a a assumir responsabilidades que noutros países ficaram (forçadamente) restringidas ao estado ou ao apoio activo deste.

Diria que entre a sociedade civil inglesa e o seu estado se estabeleceu uma simbiose, na qual se desenvolveu um benefício mais distribuído (não re-distribuido, pelo estado!) do usufruto dos excedentes criados e investidos, porque estes ficavam numa percentagem significativa na mão dos seus próprios criadores.
Isso permitiu que a evolução (crescente especialização e inter dependência culturais) da sociedade Inglesa pôde contar com toda uma dinâmica societária, já não só determinada pela iniciativa (sem dúvida importante) de um estado, mas também pelas acções de muitos milhares (à data não seriam ainda milhões) de cidadãos suficientemente autónomos, livres e com capacidade efectiva de assumir iniciativas algumas das quais exigiam elevados investimentos e, nem sempre, imediatamente rentáveis (como por exemplo Universidades e Colégios).
A Inglaterra será mais o resultado do “exercício da cidadania” que do “exercício do estado”.

Pelo contrário, no continente europeu desenvolveu-se, genericamente, uma simbiose centrada na extracção de grande parte do excedente disponível (em sentido lato: bens, força de trabalho, impostos, etc.) através do estado que posteriormente o redistribuía, de forma privilegiada, às respectivas elites ou o investia directamente.
Deste modo, mesmo a iniciativa das elites civis continentais era frequentemente uma “iniciativa subsídio dependente” do respectivo estado. Primeiro da recepção da redistribuição (privilegiada) efectuada pelo estado dos excedentes retirados à sociedade civil (nomeadamente através dos impostos), e depois como “pára-quedas” se algo corresse mal.
Como é natural não estou a incluir aqui a “pequena” iniciativa “popular” que todas as sociedades têm como artesanato, oficinas, restauração e hotelaria, pequenos serviços, etc.

É evidente que os comportamentos nas sociedades não são absolutamente simplificáveis e uniformizáveis. Contudo penso que as minhas afirmações não estarão longe da verdade, quanto aos seus traços dominantes e mais decisivos que concorrem para a dinâmica civilizacional (evolutiva) das respectivas sociedades.
A excepção eventualmente mais significativa à quase exclusiva capacidade de iniciativa do estado ou de elites subsídio dependentes no Continente Europeu, terão sido as iniciativas civis de eventuais comunidades estrangeiras existentes no respectivo território das quais é de salientar, pela sua importância e dimensão, as das comunidades judaicas e das instituições religiosas.

Na verdade o Continente Europeu também teve um período relativamente áureo à (pré) cidadania durante o qual a sociedade civil, em especial a nobreza (mesmo a pequena nobreza), a nova burguesia e até os artesãos puderam assumir um papel mais activo e importante (e marcadamente independente do estado) na sociedade europeia.
Isso ocorreu com e após a queda do império romano pois permitiu o surgimento de milhares de pequenos estados, principados, feudos, ligas de empreendedores, cidades, etc. que puderam operar de forma livre e independente do poder de estados centrais e pouco ou nada “espoliados” por estes.
A duração dessa fase varia de região para região na Europa mas sem dúvida foi cedendo lugar à centralização (não limitada ou precariamente limitada) do poder do estado na Europa, e que acabaria por culminar no Absolutismo que tomou conta de praticamente toda a Europa Continental.
Segundo a minha opinião esse período de “liberdade” e essa elevada capacidade financeira e de iniciativa, de certo modo pulverizada pelo Continente Europeu (embora com feitos mais marcantes em Itália e centro e norte da Europa), conduziu a Europa para um dos seus períodos mais áureos: o Renascimento (séc. XV - séc. XVI).

Em síntese, diria que, em muitos países a respectiva dinâmica social ficou restringida essencialmente à iniciativa do estado (e de eventuais comunidades estrangeiras aí estabelecidas), enquanto que na Inglaterra essa iniciativa foi alargada a parte importante da sua sociedade civil.

Embora parecendo um contra-senso, de facto isso criou condições de maior enriquecimento do próprio estado (e da nação), pois o investimento (em sentido lato) promovido pela sociedade civil é em média não só muito mais rentável, útil e reprodutível que o realizado pelos estados, bem como proporciona uma mais intensa e “democrática” difusão pela sociedade dos benefícios obtidos (sustentados no prémio à capacidade de iniciativa e portanto no incentivo a novas iniciativas).

No fundo, eu diria que a tradição Inglesa de concepção do estado e do exercício do respectivo poder parece ter ficado muito mais marcada pela herança da tradição Republicana do Império Romano que o ocorrido no Continente Europeu.
Durante a fase de República o poder do estado em Roma, embora fortemente repartido dentro das famílias patrícias, era limitado por um complexo sistema de poderes e contra poderes baseado no Senado, num sistema judicial relativamente eficaz, na elegibilidade de todos os lugares públicos governativos importantes (inclusive no comando dos exércitos) associada a uma elevada rotatividade nesses cargos, na medida em que o seu exercício era de apenas um ano prorrogável em condições muito especiais. O próprio período para o exercício da Ditadura, quando o Senado considerava haver situações excepcionais para fazer dela recurso, era de uma ano.
Sem dúvida o estado de Roma (durante a República) foi “minorado” pela respectiva sociedade civil (as elites romanas). A sociedade civil, em especial as famílias patrícias e com acesso aos Senado e lugares elegíveis, detinham iniciativa (e capacidade) significativa na condução da vida de Roma. Nesta fase, com frequência as elites romanas são muito ricas, por vezes mais ricas que o próprio estado de Roma. Não será exagerado dizer que, nesta fase, o estado romano serve muito mais a sociedade civil romana que o seu contrário.

Pelo contrário, no Continente, a concepção de estado e do correspondente exercício do poder, parece-me que ficou mais marcada pela tradição da fase Imperial do Império Romano, de centralização do poder e iniciativa societária “quase” exclusiva do estado.
Penso que a Igreja Católica e o Papado, grandes herdeiras da tradição imperial romana, inclusive no modelo organizacional que assumiram, terá tido importante contribuição na formatação e concepção do papel e do poder de estado na Europa.

Naturalmente o tipo de simbiose societária desenvolvido na Inglaterra não poderia ser igual ao tipo de simbiose societária que se desenvolveu nos países do Continente (evidentemente que também aqui não é possível uniformizar num modelo, o que resulta de tantos particularismos das culturas e experiências de cada país em especial as do centro e norte da Europa).

O estado Inglês repartiu, desde cedo, o peso da (boa ou má) governação muito mais com a sua sociedade civil que os estados do Continente. Diria que a simbiose desenvolvida pela Inglaterra seria potencialmente mais positiva ao surgimento e desenvolvimento da cidadania que as do Continente, como hoje entendemos dever ser a cidadania.
Talvez por isso tenha sido num País do Continente, a França, que se deu a explosão social (a Revolução Francesa) que tentou alterar o status quo existente e impor o reconhecimento da cidadania, apesar de muitos dos pensadores (filósofos) do Iluminismo dito Francês não serem franceses e terem sido precedidos há muito pelos pensadores do Iluminismo Inglês.

Outro exemplo a referir sobre a liberdade e correspondente capacidade de iniciativa da sociedade civil (pelo sua importância nomeadamente na estruturação da civilização ocidental) é o da colonização.
Enquanto que na Inglaterra (e Holanda) parte significativa da “aventura” colonial foi iniciativa da sociedade civil ou da associação desta com a Monarquia; em Portugal e Espanha essa iniciativa (e respectivos benefícios) parece sempre ter estado essencialmente concentrada nas mãos dos respectivos Estados (e soberanos).

Embora consciente da simplificação desta análise (eventualmente excessiva), não se estará longe da verdade ao afirmar-se que a colonização enriqueceu uma cada vez mais alargada e activa classe média na Inglaterra (e na Holanda) enquanto que em Portugal enriqueceu quase exclusivamente a Monarquia e uma pequena classe média fortemente ligada (e portanto dependente) do soberano.
Atribuir isso como consequência do atraso no surgimento do capitalismo em Portugal ou ao prolongamento (excessivo) do respectivo feudalismo, parece-nos que não “agarra” a questão de fundo: as consequências simbióticas da relação existente entre o papel do estado e da sociedade civil nestes Países.
Aliás, Portugal, continua, ainda hoje, a debater-se com consequências semelhantes, agora que precisaria, mais que nunca, de uma cidadania forte, activa e com iniciativa. Hoje Portugal ainda “luta” (se é que luta!) contra a simbiose que criou e desenvolveu ao longo da sua História: estado forte (!) e cidadania fraca.

A probabilidade de uma sociedade, como um todo, agir de uma forma esclarecida quando a decisão é dependente de uma entidade (o estado e o seu governante) com capacidade quase exclusiva de investir (concentrar e aplicar excedentes) é significativamente menor do que quando a acção é resultante das decisões e das acções de investimento (de excedentes) de milhares (ou milhões) de pessoas (que ainda por cima são directamente premiadas ou castigadas pelas consequenciais dos seus próprios actos - o que não acontece com a subsidio dependência estatal aonde uns são castigados, em excesso, para que outros continuem impunes aos seus erros).

Como resultado dessa “liberdade” e do correspondente tipo de responsabilidade, a Inglaterra entra na fase de economia dita Capitalista mais cedo que a Europa Continental (na generalidade) e, com uma classe média não só rica e forte mas também com espírito de iniciativa e experiência empresarial capaz de se assumir independente do estado.

Apesar das diferenças e consciente do risco de generalizações simplistas poder-se-á afirmar que genericamente a Europa Continental (com excepção da Holanda e, até certo ponto, das regiões alemãs e, com a particularíssima excepção, de importantes comunidades judaicas) irá sofrer continuamente com a falta de uma classe empresarial independente dos respectivos estados praticamente até ao fim da segunda guerra mundial, altura em que o mundo empresarial americano (associado ao Inglês) avança massivamente sobre a Europa e ajuda a criar uma nova classe empresarial mas que já não se pode considerar propriamente europeia.
Contudo, no Continente Europeu, ao lado dessa classe empresarial (cada vez mais transnacional) independente e com capacidade de iniciativa mantém-se e desenvolve-se significativamente a classe empresarial associada às empresas do estado ou dele subsidio dependentes que continuam a representar frequentemente a parte mais importante da economia de alguns países do continente europeu.

Parece-me que a única excepção merecedora de registo, pela sua longa e continuada importância no desenvolvimento europeu (e não só na sua economia), será eventualmente a sociedade civil europeia de origem judaica. Os judeus terão sempre sido relativamente independente dos estados europeus e souberam, de algum modo, aproveitar as excepções legais relativas à sua situação, inclusive de direitos importantes como a liberdade de se auto organizarem, de movimento e do exercício de determinadas actividades.

Não se pretende com o que se disse, salientar o positivo ou o negativo de um ou outro modelo de desenvolvimento (são muitos os sucessos e insucessos de um e outro sistema) nem mesmo se teria sido possível à Europa Continental (de uma maneira geral) ou à Inglaterra terem seguido modelos de desenvolvimento diferentes daqueles que tiveram.
Pretende-se apenas mostrar que o facto de terem seguido um ou outro modelo induziu formas de relacionamento diferentes entre cidadãos e o estado, induziu a criação e desenvolvimento de simbioses societárias diferentes e, isso teve (e tem) efeitos sobre o carácter das respectivas Democracias e cidadania.
Inclusive tem consequências no grau de eficiência social alcançado pelas respectivas Nações, o que assume particular (e até decisiva!) importância agora que a globalização impede os Países de se manterem “fechados”.

terça-feira, janeiro 04, 2005

INCENTIVO E BLOQUEIO À CIDADANIA

Síntese:
Os objectivos (fins) alcançados pelas sociedades humanas, à semelhança dos sistemas complexos adaptativos, dependem não só das condições iniciais dos respectivos sistemas (história e cultura) mas também dos percursos por estes seguidos para os alcançarem. A caracterização de sociedades humanas através de rótulos universalizáveis atribuídos de forma simplificada com base em algumas manifestações comuns dessas sociedades, apesar de útil, pode conduzir a graves erros de avaliação.
A cidadania, seu conceito e exercício, é tomado frequentemente como uma consequência da Democracia e esta como uma consequência da eleição directa dos órgãos de soberania das respectivas sociedades. Contudo sendo estes conceitos formatados pela história e cultura das respectivas sociedades e pelo percurso seguido para os alcançar só excepcionalmente se estará, de facto, a falar do” mesmo” quando os aplicamos a sociedades diferentes.
Não é possível deixar de atender a esses particularismos quando se pretende pensar e estruturar uma sociedade (por exemplo Portugal) com vista a fazê-la alcançar práticas e eficiência semelhantes às existentes em outras sociedades humanas.
Sendo o exercício da cidadania uma das componentes essenciais da democracia e dos seus valores é fundamental reflectir sobre o que com ela ocorre em diferentes sociedades e respectivas consequências.

Parte I
Origem da Civilização e a Não – Cidadania

O que caracteriza o conceito de evolução na biologia (na Vida), por exemplo a evolução desde as proto - células ao ser humano, é o crescente grau da complexidade dos respectivos seres vivos. Também o conceito de Civilização (termo que traduz evolução, agora na sociedade humana) está associado ao (crescente) grau de complexidade das respectivas sociedades.

O grau de complexidade de uma sociedade depende da abrangência (amplitude) e intensidade da especialização (cultural) existente no seio da respectiva sociedade e da abrangência e intensidade da consequente inter dependência (cultural) que a especialização impõe aos seus elementos individuais e colectivos e, que acabam por lhe conferir comportamentos individuais e sociais de tipo sistémico. Ou seja, o grau crescente de complexidade está ligado à crescente abrangência e intensidade da simbiose (sempre sistémica) que se desenvolve no seio da respectiva sociedade, um pouco à semelhança do que se passa no mundo da biologia.

A História mostra-nos que a especialização e a consequente inter dependência culturais (não a biológica, imposta por exemplo pelas diferenças de sexo, idade, etc.) só tomaram significativa importância (em abrangência e intensidade) quando o aumento da produtividade humana na obtenção de alimentos (favorecida pelo ambiente, ferramentas, organização e conhecimentos) permitiu suportar um número crescente de indivíduos dedicados a outras actividades (ou seja possibilitou a existência da cidade, da urbe).
A “Revolução” do Neolítico (enquanto “revolução” no aumento da produtividade e produção de alimentos) marca pois a possibilidade de surgimento das primeiras civilizações humanas (mas apenas enquanto condição necessária).
É relevante salientar que também o aumento da produtividade e da produção de alimentos (e a consequente acumulação de excedentes) marcou a possibilidade (porque já vantajosa) da exploração e espoliação de seres humanos uma vez que a produtividade (individual e colectiva) passou a permitir assegurar a sobrevivência de maior número de indivíduos do que os necessários para garantirem a respectiva sobrevida (inclusive a respectiva alimentação).

Tal pode “ter dado origem ao mais antigo desporto do Homem depois da caça – a guerra” como diz J. M. Roberts (em “Breve História do Mundo”). Que continua: “… talvez também encontre aqui as suas origens um conflito, que se prolongaria por séculos – a luta entre nómadas e colonos. A origem do poder político poderá estar na necessidade de se organizar a protecção das colheitas e do gado contra os predadores humanos. Podemos, inclusive, especular sobre as ténues raízes da noção de aristocracia que se podem procurar nos sucessos (que terão sido frequentes) dos caçadores - colectores, representantes de uma ordem social mais antiga, na exploração da vulnerabilidade dos colonos, presos às suas áreas de cultivo, através da sua escravização. A caça seria durante muito tempo o desporto dos reis, sendo o domínio do mundo animal atributo dos primeiros heróis de cujos feitos se encontram registos na escultura e na lenda.”

A especialização e a consequente inter dependência no seio das sociedades humanas exigiram pois que previamente se garantisse a sobre produção – o excedente (ou a possibilidade de a realizar) e que esta (e o potencial de produção permitido por ela) pudesse ser concentrada (acumulada) e posteriormente investida em outras actividades como por exemplo segurança e exércitos, serviços religiosos e de saúde (em sentido lato), obras de irrigação, produção de ferramentas, serviços de administração, etc.

As primeiras civilizações humanas surgiram em zonas envolvendo margens de rios, de terras leves (fáceis de trabalhar com instrumentos primitivos) e periodicamente adubadas pelas suas enchentes.
A facilidade de trabalhar esses solos e a sua elevada fertilidade (periodicamente renovada) favoreceu também a existência de comunidades maiores e mais densas. Assim mesmo que a produção individual não fosse, pelo menos inicialmente, significativamente mais elevada (mais produtiva), a dimensão dessas comunidades e a sua elevada concentração asseguravam, para o conjunto da comunidade, uma capacidade de produção excedentária significativa e como tal susceptível de tornar a sua extracção interessante. Ou seja, embora a taxa de exploração (individual) pudesse ter sido ainda não muito alta, a acumulação pode ter sido significativa graças à dimensão e elevada concentração humanas em locais de elevada fertilidade.

A sequência temporal das várias fases (aumento de produtividade, concentração humana, acumulação e redistribuição de excedentes) não deve ser entendida de forma rígida como pode parecer transparecer no que se disse. O que aconteceu terá sido (e ainda hoje o é) uma interacção contínua e permanente entre elas, potenciando de forma crescente (e em espiral) os efeitos sobre cada uma delas e sobre o respectivo processo, em si.

Se a redistribuição do excedente resultante do aumento da produtividade (e da concentração humana) poderia ser assegurada de forma relativamente eficaz pelo desenvolvimento do comércio o mesmo não acontecia com a necessidade de se assegurar a respectiva acumulação (pelo menos com os conhecimentos e instituições de então) e muito menos de se conseguir fazer uso da nova força de trabalho potencialmente disponível para outras actividades que não a produção alimentar.

Até certo ponto isso justifica porque independentemente das condições que se lhe associaram, a História mostra-nos que o surgimento e desenvolvimento das civilizações estiveram ligados a formas de organização política que se sustentavam (e sustentam frequentemente ainda hoje) em relações desiguais entre súbditos (em sentido lato) e elites governantes (religiosas e ou guerreiras e, neste caso, frequentemente, de origem étnico - cultural distinta da dos súbditos).

Ou seja tudo parece indicar que o surgimento e desenvolvimento da civilização implicaram (desde o inicio) a relação desigual entre súbditos e elites; relação que proporcionou a possibilidade de acumulação de riqueza (no sentido amplo do termo: em bens alimentares, em força de trabalho disponível - e exércitos, em terras, em património, etc.) que permitiu investir no que resultou numa crescente abrangência e intensidade de especialização e inter dependência no seio das respectivas sociedades, ou seja na elevação da sua complexidade.

Mais uma vez parece estar-se perante uma relação que é necessária mas ainda não suficiente pois a História mostra-nos como as relações desiguais, por si sós, não são factor de desenvolvimento e muito menos de civilização.
Parece que o surgimento da civilização exigiu que para além da existência dessas relações desiguais houvesse o desenvolvimento e a estruturação de simbioses (positivas) no seio das respectivas sociedades com as quais, de algum maneira, todos ganhassem com a nova situação bem como que estes ganhos pudessem potenciar, continuamente e em espiral, outros novos ganhos (de novo, vantajosos a todos ou pelo menos a um número significativo de membros da respectiva comunidade).

Apesar da origem da civilização assentar pois na relação desigual, foi essa relação (enquanto condição necessária) que possibilitou o surgimento de novas culturas (em sentido lato) que trouxeram novas vantagens à sociedade, como um todo. Nomeadamente possibilitou o aumento crescente da produtividade global da respectiva sociedade (e já não só na produção alimentar), do surgimento de novas actividades e comportamentos e da crescente melhoria das condições médias de vida (não só de segurança). Ou seja proporcionou a possibilidade de estruturação da sociedade em relações simbiótica cada mais abrangentes e intensas. Favoreceu a especialização cultural e a inter dependência cultural no seio das respectivas sociedades.

Como é evidente não se pretende aqui reflectir sobre a questão ética que esta afirmação implica e se teria sido ou não possível fazer civilização de outra forma. Apenas se pretende mostrar que a História (e por conseguinte aquilo que o Homem foi capaz de realizar, consciente ou inconscientemente) parece ter sido isso e não outra coisa por mais reprovável que aquela tenha sido, no quadro de valores éticos actuais (pelo menos em algumas partes do Planeta).

Essa relação desigual, que parece ter sido necessária à origem da civilização, teve de ser assegurada frequentemente (ou sempre) de forma forçada, mesmo sustentada em exércitos.
Mas desde cedo (ou desde sempre) a essa acção forçada para impor a relação desigual se lhe terá associado a pressão ideológica, principalmente (mítico-) religiosa (às vezes também imposta inicialmente, para o que facilitava muitas vezes um certo sincretismo com semelhantes práticas autóctones).
Contudo a coesão societária deve muito às forças centrípetas que resultam e se desenvolvem com a crescente simbiose resultante de práticas mutuamente vantajosas e que foram alargando e aprofundando a especialização e correspondente inter dependência social.

Como diz Jean Jacques Rousseau (em “Do Contrato Social”): “O mais forte nunca é suficientemente forte para ser o Senhor a não ser que ele converta força em direito e obediência em dever”.
De facto ou por efeito do “se se der tempo ao tempo” ou (e) da acção resultante da dinâmica existente na inter acção no seio das elites e destas com os súbditos é possível o surgimento e o maior ou menos desenvolvimento de relações simbióticas que sejam positivas para o conjunto da respectiva sociedade. O ganho global obtido deste modo pela sociedade cria a possibilidade de se desenvolverem crescentes forças centrípetas que favorecem a coesão societária. Essas forças simbióticas, para lá da acção forçada mesmo de tipo ideológico, procurarão auto - preservar o status quo existente e inclusive “desenvolvê-lo e ampliá-lo”.

Muitas comunidades na Índia conseguiram atingir um tal grau de aceitação da desigualdade que integraram a relação desigual na respectiva religião e estruturaram, política e economicamente, as respectivas sociedades com base numa desigualdade, assumida como natural e intrínseca à condição humana.

Isso não significa que a simbiose que se desenvolve tenha tornado a força definitivamente desnecessária à preservação do poder ou que os abusos do poder deixassem de existir ou passassem a ser aceites. Como é “melhor prevenir que remediar” a organização social previne-se: o desarmamento dos súbditos sempre constituiu o primeiro acto das elites políticas.

Apesar da relação desigual poder tornar-se útil (e nem sempre isso ocorre), essa relação não deixava de ser numa relação de exploração e espoliação dos súbditos pelas elites (políticas e as que se lhe associam) com vista à acumulação e à redistribuição diferenciada dos excedentes.

As expressões exploração e espoliação são utilizadas no sentido em que as vantagens relativas dessa simbiose societária são muito mais favoráveis às elites que aos súbditos e porque estes não têm “palavra” nem na taxa de extracção e concentração nem na redistribuição dos excedentes.
Os súbditos são frequentemente mantidos, de forma forçada, num nível de vida que pouco mais se lhes assegura a preservação da sua vida e a respectiva procriação (sobrevida). Ou seja apenas lhes é permitido manter consigo o necessário à sua reprodução como força de trabalho, como de simples rebanhos se tratando.
Aos súbditos não lhes é permitido intervir na governação da respectiva sociedade e portanto no destino de parte significativa da riqueza que criam e ajudam a criar.

É evidente que não se estando a tratar de sistemas físicos mas de sistemas muito complexos como as sociedades humanas a caracterização efectuada apenas retratará uma das relações, mais ou menos persistente ao longo do tempo, pois ela é efectivamente perturbada (!) pela mobilidade vertical e horizontal, pelas emigrações e imigrações, pelas guerras e revoluções, pelas novas necessidades e oportunidades de especialização, pela crescente inter dependência social, pelo alargamento e difusão do conhecimento, pelo aperfeiçoamento e esclarecimento das elites politicas, pela ideologia em especial a religiosa, etc.
Sendo eventualmente muitas destas perturbações o que mais dinamizará a transformação das sociedades humanas, o seu estudo não é pois menos importante à sua compreensão. Contudo essas perturbações têm reposto sempre o sistema político anterior: ou seja só quem domina o poder parece mudar, permanecendo tudo o resto relativamente (!) idêntico.

Só muito recentemente na História Humana, com os ideais da Revolução Francesa (com alguma ressalva para o sistema de poder anglo-saxónico, inclusive bastante mais antigo), essa relação desigual foi contestada com significativo vigor, na medida em que teve (e continua a ter) efectivas e profundas consequências para toda a humanidade.

Mesmo o Cristianismo, que teve e continua a ter um papel fundamental na dignificação do ser humano (todos os homens são irmãos porque filhos do mesmo Pai), durante muito tempo apenas contestou parcelarmente essa relação desigual: “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Apesar dos crescentes direitos dos (ex-) súbditos, até muito recentemente ainda se mantinha a prática da Nobreza e da Igreja não pagarem impostos (forma que foi substituindo as velhas formas de extracção e acumulação de riqueza). Por exemplo a Monarquia Inglesa só no fim do século XX deixou de não pagar impostos, quando já há muito que na Inglaterra o acto de pagar os impostos é considerado uma nobre (!) atitude de cidadania!
Ainda como exemplo, e pela sua influência na cultura europeia, refira-se que também, na República Romana, os cidadãos romanos estavam isentos de impostos em oposição a todos os outros habitantes do Império Romano. Uma das grandes vantagens em conseguir-se ascender à cidadania romana era deixar de pagar impostos (!) ou seja por uma lado obter o direito de não contribuir para o tesouro do Estado e por outro lado obter o direito de fazer parte dos beneficiários da redistribuição desse tesouro quer de forma directa (alimentos, terras, etc.) como indirecta (encomenda de serviços pelo Estado, direito aos despojos de guerra, exercício da cargos administrativos e judiciais, etc.).

Só com o Iluminismo Francês e posterior implantação das Repúblicas (e das Monarquias Constitucionais) o conceito de cidadania vem formatar e dar um outro carácter à situação legal do súbdito. O conceito de Nação assume então uma nova dimensão ao considerar-se que todos os habitantes de um País são cidadãos e como tal, legalmente, iguais em direitos e deveres.
De facto a Inglaterra já vive, há data do Iluminismo Francês, num sistema político no qual os súbditos gozam já de direitos (inclusive de certa liberdade e participação no poder e gozam de um sistema judicial particularmente equilibrado e eficaz) que só depois da Revolução Francesa se vão generalizando lentamente pelo Continente. Contudo o Iluminismo Inglês manteve-se essencialmente encerrado dentro do seu País, em oposição ao Iluminismo Francês.

Contudo esta aventura humana por estes novos caminhos (os da cidadania e de um novo tipo de poder) é sem dúvida recente e está longe de estar concluída e muito menos alargada a todo o Planeta. Penso que ainda não terá tido tempo para criar uma simbiose societária própria e capaz de se auto preservar.

A existência da intenção e do direito escrito (formal) é um passo significativo no percurso para a nova organização do poder e da cidadania, mas a sua prática é muito mais importante pois a História também dá inúmeros exemplos de como as elites que detêm o Estado “dão a volta” ao direito formal com o fim de criar e preservar os seus privilégios ou de não os alargar a demasiados utentes. Ou seja, de como na prática o alargamento da cidadania pode-se não se estender de facto a todos os habitantes mas apenas a alguns que satisfazem determinadas condições e continuarão os detentores do direito à definição das taxas de extracção da riqueza criada e do usufruto privilegiado da sua redistribuição diferenciada.