Síntese:
Os objectivos (fins) alcançados pelas sociedades humanas, à semelhança dos sistemas complexos adaptativos, dependem não só das condições iniciais dos respectivos sistemas (história e cultura) mas também dos percursos por estes seguidos para os alcançarem. A caracterização de sociedades humanas através de rótulos universalizáveis atribuídos de forma simplificada com base em algumas manifestações comuns dessas sociedades, apesar de útil, pode conduzir a graves erros de avaliação.
A cidadania, seu conceito e exercício, é tomado frequentemente como uma consequência da Democracia e esta como uma consequência da eleição directa dos órgãos de soberania das respectivas sociedades. Contudo sendo estes conceitos formatados pela história e cultura das respectivas sociedades e pelo percurso seguido para os alcançar só excepcionalmente se estará, de facto, a falar do” mesmo” quando os aplicamos a sociedades diferentes.
Não é possível deixar de atender a esses particularismos quando se pretende pensar e estruturar uma sociedade (por exemplo Portugal) com vista a fazê-la alcançar práticas e eficiência semelhantes às existentes em outras sociedades humanas.
Sendo o exercício da cidadania uma das componentes essenciais da democracia e dos seus valores é fundamental reflectir sobre o que com ela ocorre em diferentes sociedades e respectivas consequências.
Parte I
Origem da Civilização e a Não – Cidadania
O que caracteriza o conceito de evolução na biologia (na Vida), por exemplo a evolução desde as proto - células ao ser humano, é o crescente grau da complexidade dos respectivos seres vivos. Também o conceito de Civilização (termo que traduz evolução, agora na sociedade humana) está associado ao (crescente) grau de complexidade das respectivas sociedades.
O grau de complexidade de uma sociedade depende da abrangência (amplitude) e intensidade da especialização (cultural) existente no seio da respectiva sociedade e da abrangência e intensidade da consequente inter dependência (cultural) que a especialização impõe aos seus elementos individuais e colectivos e, que acabam por lhe conferir comportamentos individuais e sociais de tipo sistémico. Ou seja, o grau crescente de complexidade está ligado à crescente abrangência e intensidade da simbiose (sempre sistémica) que se desenvolve no seio da respectiva sociedade, um pouco à semelhança do que se passa no mundo da biologia.
A História mostra-nos que a especialização e a consequente inter dependência culturais (não a biológica, imposta por exemplo pelas diferenças de sexo, idade, etc.) só tomaram significativa importância (em abrangência e intensidade) quando o aumento da produtividade humana na obtenção de alimentos (favorecida pelo ambiente, ferramentas, organização e conhecimentos) permitiu suportar um número crescente de indivíduos dedicados a outras actividades (ou seja possibilitou a existência da cidade, da urbe).
A “Revolução” do Neolítico (enquanto “revolução” no aumento da produtividade e produção de alimentos) marca pois a possibilidade de surgimento das primeiras civilizações humanas (mas apenas enquanto condição necessária).
É relevante salientar que também o aumento da produtividade e da produção de alimentos (e a consequente acumulação de excedentes) marcou a possibilidade (porque já vantajosa) da exploração e espoliação de seres humanos uma vez que a produtividade (individual e colectiva) passou a permitir assegurar a sobrevivência de maior número de indivíduos do que os necessários para garantirem a respectiva sobrevida (inclusive a respectiva alimentação).
Tal pode “ter dado origem ao mais antigo desporto do Homem depois da caça – a guerra” como diz J. M. Roberts (em “Breve História do Mundo”). Que continua: “… talvez também encontre aqui as suas origens um conflito, que se prolongaria por séculos – a luta entre nómadas e colonos. A origem do poder político poderá estar na necessidade de se organizar a protecção das colheitas e do gado contra os predadores humanos. Podemos, inclusive, especular sobre as ténues raízes da noção de aristocracia que se podem procurar nos sucessos (que terão sido frequentes) dos caçadores - colectores, representantes de uma ordem social mais antiga, na exploração da vulnerabilidade dos colonos, presos às suas áreas de cultivo, através da sua escravização. A caça seria durante muito tempo o desporto dos reis, sendo o domínio do mundo animal atributo dos primeiros heróis de cujos feitos se encontram registos na escultura e na lenda.”
A especialização e a consequente inter dependência no seio das sociedades humanas exigiram pois que previamente se garantisse a sobre produção – o excedente (ou a possibilidade de a realizar) e que esta (e o potencial de produção permitido por ela) pudesse ser concentrada (acumulada) e posteriormente investida em outras actividades como por exemplo segurança e exércitos, serviços religiosos e de saúde (em sentido lato), obras de irrigação, produção de ferramentas, serviços de administração, etc.
As primeiras civilizações humanas surgiram em zonas envolvendo margens de rios, de terras leves (fáceis de trabalhar com instrumentos primitivos) e periodicamente adubadas pelas suas enchentes.
A facilidade de trabalhar esses solos e a sua elevada fertilidade (periodicamente renovada) favoreceu também a existência de comunidades maiores e mais densas. Assim mesmo que a produção individual não fosse, pelo menos inicialmente, significativamente mais elevada (mais produtiva), a dimensão dessas comunidades e a sua elevada concentração asseguravam, para o conjunto da comunidade, uma capacidade de produção excedentária significativa e como tal susceptível de tornar a sua extracção interessante. Ou seja, embora a taxa de exploração (individual) pudesse ter sido ainda não muito alta, a acumulação pode ter sido significativa graças à dimensão e elevada concentração humanas em locais de elevada fertilidade.
A sequência temporal das várias fases (aumento de produtividade, concentração humana, acumulação e redistribuição de excedentes) não deve ser entendida de forma rígida como pode parecer transparecer no que se disse. O que aconteceu terá sido (e ainda hoje o é) uma interacção contínua e permanente entre elas, potenciando de forma crescente (e em espiral) os efeitos sobre cada uma delas e sobre o respectivo processo, em si.
Se a redistribuição do excedente resultante do aumento da produtividade (e da concentração humana) poderia ser assegurada de forma relativamente eficaz pelo desenvolvimento do comércio o mesmo não acontecia com a necessidade de se assegurar a respectiva acumulação (pelo menos com os conhecimentos e instituições de então) e muito menos de se conseguir fazer uso da nova força de trabalho potencialmente disponível para outras actividades que não a produção alimentar.
Até certo ponto isso justifica porque independentemente das condições que se lhe associaram, a História mostra-nos que o surgimento e desenvolvimento das civilizações estiveram ligados a formas de organização política que se sustentavam (e sustentam frequentemente ainda hoje) em relações desiguais entre súbditos (em sentido lato) e elites governantes (religiosas e ou guerreiras e, neste caso, frequentemente, de origem étnico - cultural distinta da dos súbditos).
Ou seja tudo parece indicar que o surgimento e desenvolvimento da civilização implicaram (desde o inicio) a relação desigual entre súbditos e elites; relação que proporcionou a possibilidade de acumulação de riqueza (no sentido amplo do termo: em bens alimentares, em força de trabalho disponível - e exércitos, em terras, em património, etc.) que permitiu investir no que resultou numa crescente abrangência e intensidade de especialização e inter dependência no seio das respectivas sociedades, ou seja na elevação da sua complexidade.
Mais uma vez parece estar-se perante uma relação que é necessária mas ainda não suficiente pois a História mostra-nos como as relações desiguais, por si sós, não são factor de desenvolvimento e muito menos de civilização.
Parece que o surgimento da civilização exigiu que para além da existência dessas relações desiguais houvesse o desenvolvimento e a estruturação de simbioses (positivas) no seio das respectivas sociedades com as quais, de algum maneira, todos ganhassem com a nova situação bem como que estes ganhos pudessem potenciar, continuamente e em espiral, outros novos ganhos (de novo, vantajosos a todos ou pelo menos a um número significativo de membros da respectiva comunidade).
Apesar da origem da civilização assentar pois na relação desigual, foi essa relação (enquanto condição necessária) que possibilitou o surgimento de novas culturas (em sentido lato) que trouxeram novas vantagens à sociedade, como um todo. Nomeadamente possibilitou o aumento crescente da produtividade global da respectiva sociedade (e já não só na produção alimentar), do surgimento de novas actividades e comportamentos e da crescente melhoria das condições médias de vida (não só de segurança). Ou seja proporcionou a possibilidade de estruturação da sociedade em relações simbiótica cada mais abrangentes e intensas. Favoreceu a especialização cultural e a inter dependência cultural no seio das respectivas sociedades.
Como é evidente não se pretende aqui reflectir sobre a questão ética que esta afirmação implica e se teria sido ou não possível fazer civilização de outra forma. Apenas se pretende mostrar que a História (e por conseguinte aquilo que o Homem foi capaz de realizar, consciente ou inconscientemente) parece ter sido isso e não outra coisa por mais reprovável que aquela tenha sido, no quadro de valores éticos actuais (pelo menos em algumas partes do Planeta).
Essa relação desigual, que parece ter sido necessária à origem da civilização, teve de ser assegurada frequentemente (ou sempre) de forma forçada, mesmo sustentada em exércitos.
Mas desde cedo (ou desde sempre) a essa acção forçada para impor a relação desigual se lhe terá associado a pressão ideológica, principalmente (mítico-) religiosa (às vezes também imposta inicialmente, para o que facilitava muitas vezes um certo sincretismo com semelhantes práticas autóctones).
Contudo a coesão societária deve muito às forças centrípetas que resultam e se desenvolvem com a crescente simbiose resultante de práticas mutuamente vantajosas e que foram alargando e aprofundando a especialização e correspondente inter dependência social.
Como diz Jean Jacques Rousseau (em “Do Contrato Social”): “O mais forte nunca é suficientemente forte para ser o Senhor a não ser que ele converta força em direito e obediência em dever”.
De facto ou por efeito do “se se der tempo ao tempo” ou (e) da acção resultante da dinâmica existente na inter acção no seio das elites e destas com os súbditos é possível o surgimento e o maior ou menos desenvolvimento de relações simbióticas que sejam positivas para o conjunto da respectiva sociedade. O ganho global obtido deste modo pela sociedade cria a possibilidade de se desenvolverem crescentes forças centrípetas que favorecem a coesão societária. Essas forças simbióticas, para lá da acção forçada mesmo de tipo ideológico, procurarão auto - preservar o status quo existente e inclusive “desenvolvê-lo e ampliá-lo”.
Muitas comunidades na Índia conseguiram atingir um tal grau de aceitação da desigualdade que integraram a relação desigual na respectiva religião e estruturaram, política e economicamente, as respectivas sociedades com base numa desigualdade, assumida como natural e intrínseca à condição humana.
Isso não significa que a simbiose que se desenvolve tenha tornado a força definitivamente desnecessária à preservação do poder ou que os abusos do poder deixassem de existir ou passassem a ser aceites. Como é “melhor prevenir que remediar” a organização social previne-se: o desarmamento dos súbditos sempre constituiu o primeiro acto das elites políticas.
Apesar da relação desigual poder tornar-se útil (e nem sempre isso ocorre), essa relação não deixava de ser numa relação de exploração e espoliação dos súbditos pelas elites (políticas e as que se lhe associam) com vista à acumulação e à redistribuição diferenciada dos excedentes.
As expressões exploração e espoliação são utilizadas no sentido em que as vantagens relativas dessa simbiose societária são muito mais favoráveis às elites que aos súbditos e porque estes não têm “palavra” nem na taxa de extracção e concentração nem na redistribuição dos excedentes.
Os súbditos são frequentemente mantidos, de forma forçada, num nível de vida que pouco mais se lhes assegura a preservação da sua vida e a respectiva procriação (sobrevida). Ou seja apenas lhes é permitido manter consigo o necessário à sua reprodução como força de trabalho, como de simples rebanhos se tratando.
Aos súbditos não lhes é permitido intervir na governação da respectiva sociedade e portanto no destino de parte significativa da riqueza que criam e ajudam a criar.
É evidente que não se estando a tratar de sistemas físicos mas de sistemas muito complexos como as sociedades humanas a caracterização efectuada apenas retratará uma das relações, mais ou menos persistente ao longo do tempo, pois ela é efectivamente perturbada (!) pela mobilidade vertical e horizontal, pelas emigrações e imigrações, pelas guerras e revoluções, pelas novas necessidades e oportunidades de especialização, pela crescente inter dependência social, pelo alargamento e difusão do conhecimento, pelo aperfeiçoamento e esclarecimento das elites politicas, pela ideologia em especial a religiosa, etc.
Sendo eventualmente muitas destas perturbações o que mais dinamizará a transformação das sociedades humanas, o seu estudo não é pois menos importante à sua compreensão. Contudo essas perturbações têm reposto sempre o sistema político anterior: ou seja só quem domina o poder parece mudar, permanecendo tudo o resto relativamente (!) idêntico.
Só muito recentemente na História Humana, com os ideais da Revolução Francesa (com alguma ressalva para o sistema de poder anglo-saxónico, inclusive bastante mais antigo), essa relação desigual foi contestada com significativo vigor, na medida em que teve (e continua a ter) efectivas e profundas consequências para toda a humanidade.
Mesmo o Cristianismo, que teve e continua a ter um papel fundamental na dignificação do ser humano (todos os homens são irmãos porque filhos do mesmo Pai), durante muito tempo apenas contestou parcelarmente essa relação desigual: “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Apesar dos crescentes direitos dos (ex-) súbditos, até muito recentemente ainda se mantinha a prática da Nobreza e da Igreja não pagarem impostos (forma que foi substituindo as velhas formas de extracção e acumulação de riqueza). Por exemplo a Monarquia Inglesa só no fim do século XX deixou de não pagar impostos, quando já há muito que na Inglaterra o acto de pagar os impostos é considerado uma nobre (!) atitude de cidadania!
Ainda como exemplo, e pela sua influência na cultura europeia, refira-se que também, na República Romana, os cidadãos romanos estavam isentos de impostos em oposição a todos os outros habitantes do Império Romano. Uma das grandes vantagens em conseguir-se ascender à cidadania romana era deixar de pagar impostos (!) ou seja por uma lado obter o direito de não contribuir para o tesouro do Estado e por outro lado obter o direito de fazer parte dos beneficiários da redistribuição desse tesouro quer de forma directa (alimentos, terras, etc.) como indirecta (encomenda de serviços pelo Estado, direito aos despojos de guerra, exercício da cargos administrativos e judiciais, etc.).
Só com o Iluminismo Francês e posterior implantação das Repúblicas (e das Monarquias Constitucionais) o conceito de cidadania vem formatar e dar um outro carácter à situação legal do súbdito. O conceito de Nação assume então uma nova dimensão ao considerar-se que todos os habitantes de um País são cidadãos e como tal, legalmente, iguais em direitos e deveres.
De facto a Inglaterra já vive, há data do Iluminismo Francês, num sistema político no qual os súbditos gozam já de direitos (inclusive de certa liberdade e participação no poder e gozam de um sistema judicial particularmente equilibrado e eficaz) que só depois da Revolução Francesa se vão generalizando lentamente pelo Continente. Contudo o Iluminismo Inglês manteve-se essencialmente encerrado dentro do seu País, em oposição ao Iluminismo Francês.
Contudo esta aventura humana por estes novos caminhos (os da cidadania e de um novo tipo de poder) é sem dúvida recente e está longe de estar concluída e muito menos alargada a todo o Planeta. Penso que ainda não terá tido tempo para criar uma simbiose societária própria e capaz de se auto preservar.
A existência da intenção e do direito escrito (formal) é um passo significativo no percurso para a nova organização do poder e da cidadania, mas a sua prática é muito mais importante pois a História também dá inúmeros exemplos de como as elites que detêm o Estado “dão a volta” ao direito formal com o fim de criar e preservar os seus privilégios ou de não os alargar a demasiados utentes. Ou seja, de como na prática o alargamento da cidadania pode-se não se estender de facto a todos os habitantes mas apenas a alguns que satisfazem determinadas condições e continuarão os detentores do direito à definição das taxas de extracção da riqueza criada e do usufruto privilegiado da sua redistribuição diferenciada.
Os objectivos (fins) alcançados pelas sociedades humanas, à semelhança dos sistemas complexos adaptativos, dependem não só das condições iniciais dos respectivos sistemas (história e cultura) mas também dos percursos por estes seguidos para os alcançarem. A caracterização de sociedades humanas através de rótulos universalizáveis atribuídos de forma simplificada com base em algumas manifestações comuns dessas sociedades, apesar de útil, pode conduzir a graves erros de avaliação.
A cidadania, seu conceito e exercício, é tomado frequentemente como uma consequência da Democracia e esta como uma consequência da eleição directa dos órgãos de soberania das respectivas sociedades. Contudo sendo estes conceitos formatados pela história e cultura das respectivas sociedades e pelo percurso seguido para os alcançar só excepcionalmente se estará, de facto, a falar do” mesmo” quando os aplicamos a sociedades diferentes.
Não é possível deixar de atender a esses particularismos quando se pretende pensar e estruturar uma sociedade (por exemplo Portugal) com vista a fazê-la alcançar práticas e eficiência semelhantes às existentes em outras sociedades humanas.
Sendo o exercício da cidadania uma das componentes essenciais da democracia e dos seus valores é fundamental reflectir sobre o que com ela ocorre em diferentes sociedades e respectivas consequências.
Parte I
Origem da Civilização e a Não – Cidadania
O que caracteriza o conceito de evolução na biologia (na Vida), por exemplo a evolução desde as proto - células ao ser humano, é o crescente grau da complexidade dos respectivos seres vivos. Também o conceito de Civilização (termo que traduz evolução, agora na sociedade humana) está associado ao (crescente) grau de complexidade das respectivas sociedades.
O grau de complexidade de uma sociedade depende da abrangência (amplitude) e intensidade da especialização (cultural) existente no seio da respectiva sociedade e da abrangência e intensidade da consequente inter dependência (cultural) que a especialização impõe aos seus elementos individuais e colectivos e, que acabam por lhe conferir comportamentos individuais e sociais de tipo sistémico. Ou seja, o grau crescente de complexidade está ligado à crescente abrangência e intensidade da simbiose (sempre sistémica) que se desenvolve no seio da respectiva sociedade, um pouco à semelhança do que se passa no mundo da biologia.
A História mostra-nos que a especialização e a consequente inter dependência culturais (não a biológica, imposta por exemplo pelas diferenças de sexo, idade, etc.) só tomaram significativa importância (em abrangência e intensidade) quando o aumento da produtividade humana na obtenção de alimentos (favorecida pelo ambiente, ferramentas, organização e conhecimentos) permitiu suportar um número crescente de indivíduos dedicados a outras actividades (ou seja possibilitou a existência da cidade, da urbe).
A “Revolução” do Neolítico (enquanto “revolução” no aumento da produtividade e produção de alimentos) marca pois a possibilidade de surgimento das primeiras civilizações humanas (mas apenas enquanto condição necessária).
É relevante salientar que também o aumento da produtividade e da produção de alimentos (e a consequente acumulação de excedentes) marcou a possibilidade (porque já vantajosa) da exploração e espoliação de seres humanos uma vez que a produtividade (individual e colectiva) passou a permitir assegurar a sobrevivência de maior número de indivíduos do que os necessários para garantirem a respectiva sobrevida (inclusive a respectiva alimentação).
Tal pode “ter dado origem ao mais antigo desporto do Homem depois da caça – a guerra” como diz J. M. Roberts (em “Breve História do Mundo”). Que continua: “… talvez também encontre aqui as suas origens um conflito, que se prolongaria por séculos – a luta entre nómadas e colonos. A origem do poder político poderá estar na necessidade de se organizar a protecção das colheitas e do gado contra os predadores humanos. Podemos, inclusive, especular sobre as ténues raízes da noção de aristocracia que se podem procurar nos sucessos (que terão sido frequentes) dos caçadores - colectores, representantes de uma ordem social mais antiga, na exploração da vulnerabilidade dos colonos, presos às suas áreas de cultivo, através da sua escravização. A caça seria durante muito tempo o desporto dos reis, sendo o domínio do mundo animal atributo dos primeiros heróis de cujos feitos se encontram registos na escultura e na lenda.”
A especialização e a consequente inter dependência no seio das sociedades humanas exigiram pois que previamente se garantisse a sobre produção – o excedente (ou a possibilidade de a realizar) e que esta (e o potencial de produção permitido por ela) pudesse ser concentrada (acumulada) e posteriormente investida em outras actividades como por exemplo segurança e exércitos, serviços religiosos e de saúde (em sentido lato), obras de irrigação, produção de ferramentas, serviços de administração, etc.
As primeiras civilizações humanas surgiram em zonas envolvendo margens de rios, de terras leves (fáceis de trabalhar com instrumentos primitivos) e periodicamente adubadas pelas suas enchentes.
A facilidade de trabalhar esses solos e a sua elevada fertilidade (periodicamente renovada) favoreceu também a existência de comunidades maiores e mais densas. Assim mesmo que a produção individual não fosse, pelo menos inicialmente, significativamente mais elevada (mais produtiva), a dimensão dessas comunidades e a sua elevada concentração asseguravam, para o conjunto da comunidade, uma capacidade de produção excedentária significativa e como tal susceptível de tornar a sua extracção interessante. Ou seja, embora a taxa de exploração (individual) pudesse ter sido ainda não muito alta, a acumulação pode ter sido significativa graças à dimensão e elevada concentração humanas em locais de elevada fertilidade.
A sequência temporal das várias fases (aumento de produtividade, concentração humana, acumulação e redistribuição de excedentes) não deve ser entendida de forma rígida como pode parecer transparecer no que se disse. O que aconteceu terá sido (e ainda hoje o é) uma interacção contínua e permanente entre elas, potenciando de forma crescente (e em espiral) os efeitos sobre cada uma delas e sobre o respectivo processo, em si.
Se a redistribuição do excedente resultante do aumento da produtividade (e da concentração humana) poderia ser assegurada de forma relativamente eficaz pelo desenvolvimento do comércio o mesmo não acontecia com a necessidade de se assegurar a respectiva acumulação (pelo menos com os conhecimentos e instituições de então) e muito menos de se conseguir fazer uso da nova força de trabalho potencialmente disponível para outras actividades que não a produção alimentar.
Até certo ponto isso justifica porque independentemente das condições que se lhe associaram, a História mostra-nos que o surgimento e desenvolvimento das civilizações estiveram ligados a formas de organização política que se sustentavam (e sustentam frequentemente ainda hoje) em relações desiguais entre súbditos (em sentido lato) e elites governantes (religiosas e ou guerreiras e, neste caso, frequentemente, de origem étnico - cultural distinta da dos súbditos).
Ou seja tudo parece indicar que o surgimento e desenvolvimento da civilização implicaram (desde o inicio) a relação desigual entre súbditos e elites; relação que proporcionou a possibilidade de acumulação de riqueza (no sentido amplo do termo: em bens alimentares, em força de trabalho disponível - e exércitos, em terras, em património, etc.) que permitiu investir no que resultou numa crescente abrangência e intensidade de especialização e inter dependência no seio das respectivas sociedades, ou seja na elevação da sua complexidade.
Mais uma vez parece estar-se perante uma relação que é necessária mas ainda não suficiente pois a História mostra-nos como as relações desiguais, por si sós, não são factor de desenvolvimento e muito menos de civilização.
Parece que o surgimento da civilização exigiu que para além da existência dessas relações desiguais houvesse o desenvolvimento e a estruturação de simbioses (positivas) no seio das respectivas sociedades com as quais, de algum maneira, todos ganhassem com a nova situação bem como que estes ganhos pudessem potenciar, continuamente e em espiral, outros novos ganhos (de novo, vantajosos a todos ou pelo menos a um número significativo de membros da respectiva comunidade).
Apesar da origem da civilização assentar pois na relação desigual, foi essa relação (enquanto condição necessária) que possibilitou o surgimento de novas culturas (em sentido lato) que trouxeram novas vantagens à sociedade, como um todo. Nomeadamente possibilitou o aumento crescente da produtividade global da respectiva sociedade (e já não só na produção alimentar), do surgimento de novas actividades e comportamentos e da crescente melhoria das condições médias de vida (não só de segurança). Ou seja proporcionou a possibilidade de estruturação da sociedade em relações simbiótica cada mais abrangentes e intensas. Favoreceu a especialização cultural e a inter dependência cultural no seio das respectivas sociedades.
Como é evidente não se pretende aqui reflectir sobre a questão ética que esta afirmação implica e se teria sido ou não possível fazer civilização de outra forma. Apenas se pretende mostrar que a História (e por conseguinte aquilo que o Homem foi capaz de realizar, consciente ou inconscientemente) parece ter sido isso e não outra coisa por mais reprovável que aquela tenha sido, no quadro de valores éticos actuais (pelo menos em algumas partes do Planeta).
Essa relação desigual, que parece ter sido necessária à origem da civilização, teve de ser assegurada frequentemente (ou sempre) de forma forçada, mesmo sustentada em exércitos.
Mas desde cedo (ou desde sempre) a essa acção forçada para impor a relação desigual se lhe terá associado a pressão ideológica, principalmente (mítico-) religiosa (às vezes também imposta inicialmente, para o que facilitava muitas vezes um certo sincretismo com semelhantes práticas autóctones).
Contudo a coesão societária deve muito às forças centrípetas que resultam e se desenvolvem com a crescente simbiose resultante de práticas mutuamente vantajosas e que foram alargando e aprofundando a especialização e correspondente inter dependência social.
Como diz Jean Jacques Rousseau (em “Do Contrato Social”): “O mais forte nunca é suficientemente forte para ser o Senhor a não ser que ele converta força em direito e obediência em dever”.
De facto ou por efeito do “se se der tempo ao tempo” ou (e) da acção resultante da dinâmica existente na inter acção no seio das elites e destas com os súbditos é possível o surgimento e o maior ou menos desenvolvimento de relações simbióticas que sejam positivas para o conjunto da respectiva sociedade. O ganho global obtido deste modo pela sociedade cria a possibilidade de se desenvolverem crescentes forças centrípetas que favorecem a coesão societária. Essas forças simbióticas, para lá da acção forçada mesmo de tipo ideológico, procurarão auto - preservar o status quo existente e inclusive “desenvolvê-lo e ampliá-lo”.
Muitas comunidades na Índia conseguiram atingir um tal grau de aceitação da desigualdade que integraram a relação desigual na respectiva religião e estruturaram, política e economicamente, as respectivas sociedades com base numa desigualdade, assumida como natural e intrínseca à condição humana.
Isso não significa que a simbiose que se desenvolve tenha tornado a força definitivamente desnecessária à preservação do poder ou que os abusos do poder deixassem de existir ou passassem a ser aceites. Como é “melhor prevenir que remediar” a organização social previne-se: o desarmamento dos súbditos sempre constituiu o primeiro acto das elites políticas.
Apesar da relação desigual poder tornar-se útil (e nem sempre isso ocorre), essa relação não deixava de ser numa relação de exploração e espoliação dos súbditos pelas elites (políticas e as que se lhe associam) com vista à acumulação e à redistribuição diferenciada dos excedentes.
As expressões exploração e espoliação são utilizadas no sentido em que as vantagens relativas dessa simbiose societária são muito mais favoráveis às elites que aos súbditos e porque estes não têm “palavra” nem na taxa de extracção e concentração nem na redistribuição dos excedentes.
Os súbditos são frequentemente mantidos, de forma forçada, num nível de vida que pouco mais se lhes assegura a preservação da sua vida e a respectiva procriação (sobrevida). Ou seja apenas lhes é permitido manter consigo o necessário à sua reprodução como força de trabalho, como de simples rebanhos se tratando.
Aos súbditos não lhes é permitido intervir na governação da respectiva sociedade e portanto no destino de parte significativa da riqueza que criam e ajudam a criar.
É evidente que não se estando a tratar de sistemas físicos mas de sistemas muito complexos como as sociedades humanas a caracterização efectuada apenas retratará uma das relações, mais ou menos persistente ao longo do tempo, pois ela é efectivamente perturbada (!) pela mobilidade vertical e horizontal, pelas emigrações e imigrações, pelas guerras e revoluções, pelas novas necessidades e oportunidades de especialização, pela crescente inter dependência social, pelo alargamento e difusão do conhecimento, pelo aperfeiçoamento e esclarecimento das elites politicas, pela ideologia em especial a religiosa, etc.
Sendo eventualmente muitas destas perturbações o que mais dinamizará a transformação das sociedades humanas, o seu estudo não é pois menos importante à sua compreensão. Contudo essas perturbações têm reposto sempre o sistema político anterior: ou seja só quem domina o poder parece mudar, permanecendo tudo o resto relativamente (!) idêntico.
Só muito recentemente na História Humana, com os ideais da Revolução Francesa (com alguma ressalva para o sistema de poder anglo-saxónico, inclusive bastante mais antigo), essa relação desigual foi contestada com significativo vigor, na medida em que teve (e continua a ter) efectivas e profundas consequências para toda a humanidade.
Mesmo o Cristianismo, que teve e continua a ter um papel fundamental na dignificação do ser humano (todos os homens são irmãos porque filhos do mesmo Pai), durante muito tempo apenas contestou parcelarmente essa relação desigual: “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Apesar dos crescentes direitos dos (ex-) súbditos, até muito recentemente ainda se mantinha a prática da Nobreza e da Igreja não pagarem impostos (forma que foi substituindo as velhas formas de extracção e acumulação de riqueza). Por exemplo a Monarquia Inglesa só no fim do século XX deixou de não pagar impostos, quando já há muito que na Inglaterra o acto de pagar os impostos é considerado uma nobre (!) atitude de cidadania!
Ainda como exemplo, e pela sua influência na cultura europeia, refira-se que também, na República Romana, os cidadãos romanos estavam isentos de impostos em oposição a todos os outros habitantes do Império Romano. Uma das grandes vantagens em conseguir-se ascender à cidadania romana era deixar de pagar impostos (!) ou seja por uma lado obter o direito de não contribuir para o tesouro do Estado e por outro lado obter o direito de fazer parte dos beneficiários da redistribuição desse tesouro quer de forma directa (alimentos, terras, etc.) como indirecta (encomenda de serviços pelo Estado, direito aos despojos de guerra, exercício da cargos administrativos e judiciais, etc.).
Só com o Iluminismo Francês e posterior implantação das Repúblicas (e das Monarquias Constitucionais) o conceito de cidadania vem formatar e dar um outro carácter à situação legal do súbdito. O conceito de Nação assume então uma nova dimensão ao considerar-se que todos os habitantes de um País são cidadãos e como tal, legalmente, iguais em direitos e deveres.
De facto a Inglaterra já vive, há data do Iluminismo Francês, num sistema político no qual os súbditos gozam já de direitos (inclusive de certa liberdade e participação no poder e gozam de um sistema judicial particularmente equilibrado e eficaz) que só depois da Revolução Francesa se vão generalizando lentamente pelo Continente. Contudo o Iluminismo Inglês manteve-se essencialmente encerrado dentro do seu País, em oposição ao Iluminismo Francês.
Contudo esta aventura humana por estes novos caminhos (os da cidadania e de um novo tipo de poder) é sem dúvida recente e está longe de estar concluída e muito menos alargada a todo o Planeta. Penso que ainda não terá tido tempo para criar uma simbiose societária própria e capaz de se auto preservar.
A existência da intenção e do direito escrito (formal) é um passo significativo no percurso para a nova organização do poder e da cidadania, mas a sua prática é muito mais importante pois a História também dá inúmeros exemplos de como as elites que detêm o Estado “dão a volta” ao direito formal com o fim de criar e preservar os seus privilégios ou de não os alargar a demasiados utentes. Ou seja, de como na prática o alargamento da cidadania pode-se não se estender de facto a todos os habitantes mas apenas a alguns que satisfazem determinadas condições e continuarão os detentores do direito à definição das taxas de extracção da riqueza criada e do usufruto privilegiado da sua redistribuição diferenciada.
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