Como vimos, a Civilização surge e desenvolve-se sustentada na relação desigual entre (elites associadas e detentoras do) estado e súbditos, na medida em que essa relação possibilitou não só a concentração e a extracção dos excedentes (bens, força de trabalho, etc.) disponíveis na sociedade como a sua redistribuição diferenciada com vista ao consumo e ao investimento necessários ao surgimento e desenvolvimento de novas especializações (culturais) que, por sua vez, conduziram a uma maior interdependência cultural no seio das respectivas sociedades (crescente alargamento e intensificação simbiótica na respectiva sociedade).
A História dá-nos múltiplos exemplos de como esse investimento (em sentido lato), com vista ao desenvolvimento, pôde ser realizado de forma central, pelo estado (e elites que o controlam), ou de forma “mais ou menos” descentralizada quando a sociedade civil tem a necessária “liberdade” e também é capaz de iniciativas “mais ou menos” significativas.
A expressão “mais ou menos”, acima utilizada, procura reflectir entre outros as limitações da sociedade civil em tomar iniciativas (em especial as socialmente significativas), pois estas dependem frequentemente da prévia concentração de excedentes e posterior redistribuição. A História mostra-nos que durante muitos séculos essas condições só se asseguraram com a imposição (pela força) do estado, ou seja, das elites que o detêm, controlam ou que se lhe associam.
São muitos os exemplos e especificidades de como os países se estruturaram relativamente ao exercício desse poder, isto é, de como impunham a organização da produção, concentração e da extracção da riqueza nacional e de como a redistribuíam. Consequentemente temos hoje múltiplos exemplos para estudo e o facto de podermos olhar para o “passado” permite-nos avaliar da maior ou menor eficácia das várias soluções então adoptadas.
Por exemplo, as elites e os povos das actuais democracias ocidentais percorreram um longo caminho para compreenderem as vantagens societárias do direito de todos os súbditos passarem a ser “cidadãos”. Isto é, para que a solidariedade entre iguais (as elites) se alargasse a todos os habitantes da Nação e fosse permitido aos cidadãos operar livremente e tomar iniciativa.
Contudo nas sociedades humana (sistemas complexos adaptativos) o fim depende não só das condições iniciais do sistema (a sua história e cultura – em sentido lato) mas também do percurso realizado para o atingir. E isso porque, sendo sistemas adaptativos, a evolução de uma qualquer simbiose societária traduz-se num ajustamento simbiótico continuamente auto - realizado ao longo do respectivo percurso.
Como consequência, por exemplo, considerar que basta todos os cidadãos “elegerem” os órgãos de soberania (fim alcançado) para se ascender à democracia e à cidadania constitui uma corruptela não só do conceito do que é democracia e do que é cidadania mas também da forma como estes conceitos são vividos nas sociedades (-referência) aonde eles tomaram as primeiras formas práticas e aonde mais se desenvolveram.
Basta olhar muitas das novas democracias africanas, asiáticas e da América Latina para ter disso consciência. Contudo se em algumas daquelas “democracias” é evidente a ausência de democracia, há democracias aonde não é tão evidente essa ausência e a falta correspondente de cidadania!
Apesar da Revolução Francesa e dos seus ideais marcarem um “momento” histórico fundamental na história humana, a Inglaterra é considerada a percursora do moderno sistema democrático (as formas republicanas grega, romana e italianas estavam ainda bastante afastadas da noção actual de cidadania das modernas sociedades ocidentais).
Como diz S.E. Finer em “História do Governo”: “Fora da Inglaterra, a noção de que os destinos do estado são decididos, pelo menos em última análise, pelos elementos politicamente significativos da sua população, isto é, de que ele pertence há nação e não ao governante, surge com muita clareza muito tardiamente; e quanto ao reconhecimento explícito de que a soberania reside na nação, teremos de esperar até à Revolução Francesa …”.
Na Inglaterra, já em 1215, os nobres ingleses impuseram ao rei a Magna Carta, documento destinado a impedir os abusos da autoridade e que ainda hoje são basilares no direito público inglês sobretudo no aspecto das garantias individuais (habeas corpus).
O sistema de poder na Inglaterra, com a “ajuda” de um sistema de justiça muito específico (pragmático, transparente e juridicamente auto-responsabilizante), foi “limitado” já no início do séc-XIII quando ainda hoje há países, ditos democráticos, que não dão aos seus cidadãos idênticas garantias (sete séculos depois).
A transferência de parte do poder do estado para o Parlamento (Câmara de Comuns) e a institucionalização de um sistema de poderes e contra poderes, a que não é de somenos importância salientar o seu exemplar sistema de justiçar (muito mais ligado à praxis que à doutrina), não só evitava “abusos” do poder do estado (inclusive do Monarca) como principalmente trouxe uma maior participação da sociedade civil e “libertou” (e incentivou) a iniciativa do cidadão (numa primeira fase, da nobreza) e facilitou a respectiva mobilidade horizontal e mesmo vertical.
Esse aumento de capacidade interventora da sociedade civil deu-lhe um crescente poder, experiência e sentido societário que se reflectiu, por efeito de feedback, por sua vez na restrição do poder do estado em impor-se abusivamente à respectiva sociedade civil
Ou seja, cedo na sua história, o estado Inglês não só foi “limitado” pela sociedade civil como esta teve possibilidade de desempenhar um peso significativo e crescente na responsabilidade da governação e desenvolvimento da respectiva sociedade.
Como consequência, por exemplo, na História Económica da Europa há múltiplos exemplos em como a sociedade civil Inglesa atingiu capacidade e toma iniciativas em áreas (como por exemplo: criação de Universidades, construção de estradas e caminhos de ferro) que, no Continente Europeu, são tipicamente de iniciativa estatal para não referir a sua contínua e intensa participação (independente do Estado) no ensino, cultura e solidariedade social.
Ou seja a “liberdade” para o exercício de uma já - cidadania (pré – cidadania), inclusive pela limitação do estado em lançar impostos, cedo permitiu à sociedade civil acumular património e poder que lhe proporcionou tomar o exercício de iniciativas que noutros locais só o estado dispunha e se abalançava a fazer. Isso favoreceu a criação de uma classe média inglesa (não subsidio dependente), desenvolveu-a e exercitou-a a assumir responsabilidades que noutros países ficaram (forçadamente) restringidas ao estado ou ao apoio activo deste.
Diria que entre a sociedade civil inglesa e o seu estado se estabeleceu uma simbiose, na qual se desenvolveu um benefício mais distribuído (não re-distribuido, pelo estado!) do usufruto dos excedentes criados e investidos, porque estes ficavam numa percentagem significativa na mão dos seus próprios criadores.
Isso permitiu que a evolução (crescente especialização e inter dependência culturais) da sociedade Inglesa pôde contar com toda uma dinâmica societária, já não só determinada pela iniciativa (sem dúvida importante) de um estado, mas também pelas acções de muitos milhares (à data não seriam ainda milhões) de cidadãos suficientemente autónomos, livres e com capacidade efectiva de assumir iniciativas algumas das quais exigiam elevados investimentos e, nem sempre, imediatamente rentáveis (como por exemplo Universidades e Colégios).
A Inglaterra será mais o resultado do “exercício da cidadania” que do “exercício do estado”.
Pelo contrário, no continente europeu desenvolveu-se, genericamente, uma simbiose centrada na extracção de grande parte do excedente disponível (em sentido lato: bens, força de trabalho, impostos, etc.) através do estado que posteriormente o redistribuía, de forma privilegiada, às respectivas elites ou o investia directamente.
Deste modo, mesmo a iniciativa das elites civis continentais era frequentemente uma “iniciativa subsídio dependente” do respectivo estado. Primeiro da recepção da redistribuição (privilegiada) efectuada pelo estado dos excedentes retirados à sociedade civil (nomeadamente através dos impostos), e depois como “pára-quedas” se algo corresse mal.
Como é natural não estou a incluir aqui a “pequena” iniciativa “popular” que todas as sociedades têm como artesanato, oficinas, restauração e hotelaria, pequenos serviços, etc.
É evidente que os comportamentos nas sociedades não são absolutamente simplificáveis e uniformizáveis. Contudo penso que as minhas afirmações não estarão longe da verdade, quanto aos seus traços dominantes e mais decisivos que concorrem para a dinâmica civilizacional (evolutiva) das respectivas sociedades.
A excepção eventualmente mais significativa à quase exclusiva capacidade de iniciativa do estado ou de elites subsídio dependentes no Continente Europeu, terão sido as iniciativas civis de eventuais comunidades estrangeiras existentes no respectivo território das quais é de salientar, pela sua importância e dimensão, as das comunidades judaicas e das instituições religiosas.
Na verdade o Continente Europeu também teve um período relativamente áureo à (pré) cidadania durante o qual a sociedade civil, em especial a nobreza (mesmo a pequena nobreza), a nova burguesia e até os artesãos puderam assumir um papel mais activo e importante (e marcadamente independente do estado) na sociedade europeia.
Isso ocorreu com e após a queda do império romano pois permitiu o surgimento de milhares de pequenos estados, principados, feudos, ligas de empreendedores, cidades, etc. que puderam operar de forma livre e independente do poder de estados centrais e pouco ou nada “espoliados” por estes.
A duração dessa fase varia de região para região na Europa mas sem dúvida foi cedendo lugar à centralização (não limitada ou precariamente limitada) do poder do estado na Europa, e que acabaria por culminar no Absolutismo que tomou conta de praticamente toda a Europa Continental.
Segundo a minha opinião esse período de “liberdade” e essa elevada capacidade financeira e de iniciativa, de certo modo pulverizada pelo Continente Europeu (embora com feitos mais marcantes em Itália e centro e norte da Europa), conduziu a Europa para um dos seus períodos mais áureos: o Renascimento (séc. XV - séc. XVI).
Em síntese, diria que, em muitos países a respectiva dinâmica social ficou restringida essencialmente à iniciativa do estado (e de eventuais comunidades estrangeiras aí estabelecidas), enquanto que na Inglaterra essa iniciativa foi alargada a parte importante da sua sociedade civil.
Embora parecendo um contra-senso, de facto isso criou condições de maior enriquecimento do próprio estado (e da nação), pois o investimento (em sentido lato) promovido pela sociedade civil é em média não só muito mais rentável, útil e reprodutível que o realizado pelos estados, bem como proporciona uma mais intensa e “democrática” difusão pela sociedade dos benefícios obtidos (sustentados no prémio à capacidade de iniciativa e portanto no incentivo a novas iniciativas).
No fundo, eu diria que a tradição Inglesa de concepção do estado e do exercício do respectivo poder parece ter ficado muito mais marcada pela herança da tradição Republicana do Império Romano que o ocorrido no Continente Europeu.
Durante a fase de República o poder do estado em Roma, embora fortemente repartido dentro das famílias patrícias, era limitado por um complexo sistema de poderes e contra poderes baseado no Senado, num sistema judicial relativamente eficaz, na elegibilidade de todos os lugares públicos governativos importantes (inclusive no comando dos exércitos) associada a uma elevada rotatividade nesses cargos, na medida em que o seu exercício era de apenas um ano prorrogável em condições muito especiais. O próprio período para o exercício da Ditadura, quando o Senado considerava haver situações excepcionais para fazer dela recurso, era de uma ano.
Sem dúvida o estado de Roma (durante a República) foi “minorado” pela respectiva sociedade civil (as elites romanas). A sociedade civil, em especial as famílias patrícias e com acesso aos Senado e lugares elegíveis, detinham iniciativa (e capacidade) significativa na condução da vida de Roma. Nesta fase, com frequência as elites romanas são muito ricas, por vezes mais ricas que o próprio estado de Roma. Não será exagerado dizer que, nesta fase, o estado romano serve muito mais a sociedade civil romana que o seu contrário.
Pelo contrário, no Continente, a concepção de estado e do correspondente exercício do poder, parece-me que ficou mais marcada pela tradição da fase Imperial do Império Romano, de centralização do poder e iniciativa societária “quase” exclusiva do estado.
Penso que a Igreja Católica e o Papado, grandes herdeiras da tradição imperial romana, inclusive no modelo organizacional que assumiram, terá tido importante contribuição na formatação e concepção do papel e do poder de estado na Europa.
Naturalmente o tipo de simbiose societária desenvolvido na Inglaterra não poderia ser igual ao tipo de simbiose societária que se desenvolveu nos países do Continente (evidentemente que também aqui não é possível uniformizar num modelo, o que resulta de tantos particularismos das culturas e experiências de cada país em especial as do centro e norte da Europa).
O estado Inglês repartiu, desde cedo, o peso da (boa ou má) governação muito mais com a sua sociedade civil que os estados do Continente. Diria que a simbiose desenvolvida pela Inglaterra seria potencialmente mais positiva ao surgimento e desenvolvimento da cidadania que as do Continente, como hoje entendemos dever ser a cidadania.
Talvez por isso tenha sido num País do Continente, a França, que se deu a explosão social (a Revolução Francesa) que tentou alterar o status quo existente e impor o reconhecimento da cidadania, apesar de muitos dos pensadores (filósofos) do Iluminismo dito Francês não serem franceses e terem sido precedidos há muito pelos pensadores do Iluminismo Inglês.
Outro exemplo a referir sobre a liberdade e correspondente capacidade de iniciativa da sociedade civil (pelo sua importância nomeadamente na estruturação da civilização ocidental) é o da colonização.
Enquanto que na Inglaterra (e Holanda) parte significativa da “aventura” colonial foi iniciativa da sociedade civil ou da associação desta com a Monarquia; em Portugal e Espanha essa iniciativa (e respectivos benefícios) parece sempre ter estado essencialmente concentrada nas mãos dos respectivos Estados (e soberanos).
Embora consciente da simplificação desta análise (eventualmente excessiva), não se estará longe da verdade ao afirmar-se que a colonização enriqueceu uma cada vez mais alargada e activa classe média na Inglaterra (e na Holanda) enquanto que em Portugal enriqueceu quase exclusivamente a Monarquia e uma pequena classe média fortemente ligada (e portanto dependente) do soberano.
Atribuir isso como consequência do atraso no surgimento do capitalismo em Portugal ou ao prolongamento (excessivo) do respectivo feudalismo, parece-nos que não “agarra” a questão de fundo: as consequências simbióticas da relação existente entre o papel do estado e da sociedade civil nestes Países.
Aliás, Portugal, continua, ainda hoje, a debater-se com consequências semelhantes, agora que precisaria, mais que nunca, de uma cidadania forte, activa e com iniciativa. Hoje Portugal ainda “luta” (se é que luta!) contra a simbiose que criou e desenvolveu ao longo da sua História: estado forte (!) e cidadania fraca.
A probabilidade de uma sociedade, como um todo, agir de uma forma esclarecida quando a decisão é dependente de uma entidade (o estado e o seu governante) com capacidade quase exclusiva de investir (concentrar e aplicar excedentes) é significativamente menor do que quando a acção é resultante das decisões e das acções de investimento (de excedentes) de milhares (ou milhões) de pessoas (que ainda por cima são directamente premiadas ou castigadas pelas consequenciais dos seus próprios actos - o que não acontece com a subsidio dependência estatal aonde uns são castigados, em excesso, para que outros continuem impunes aos seus erros).
Como resultado dessa “liberdade” e do correspondente tipo de responsabilidade, a Inglaterra entra na fase de economia dita Capitalista mais cedo que a Europa Continental (na generalidade) e, com uma classe média não só rica e forte mas também com espírito de iniciativa e experiência empresarial capaz de se assumir independente do estado.
Apesar das diferenças e consciente do risco de generalizações simplistas poder-se-á afirmar que genericamente a Europa Continental (com excepção da Holanda e, até certo ponto, das regiões alemãs e, com a particularíssima excepção, de importantes comunidades judaicas) irá sofrer continuamente com a falta de uma classe empresarial independente dos respectivos estados praticamente até ao fim da segunda guerra mundial, altura em que o mundo empresarial americano (associado ao Inglês) avança massivamente sobre a Europa e ajuda a criar uma nova classe empresarial mas que já não se pode considerar propriamente europeia.
Contudo, no Continente Europeu, ao lado dessa classe empresarial (cada vez mais transnacional) independente e com capacidade de iniciativa mantém-se e desenvolve-se significativamente a classe empresarial associada às empresas do estado ou dele subsidio dependentes que continuam a representar frequentemente a parte mais importante da economia de alguns países do continente europeu.
Parece-me que a única excepção merecedora de registo, pela sua longa e continuada importância no desenvolvimento europeu (e não só na sua economia), será eventualmente a sociedade civil europeia de origem judaica. Os judeus terão sempre sido relativamente independente dos estados europeus e souberam, de algum modo, aproveitar as excepções legais relativas à sua situação, inclusive de direitos importantes como a liberdade de se auto organizarem, de movimento e do exercício de determinadas actividades.
Não se pretende com o que se disse, salientar o positivo ou o negativo de um ou outro modelo de desenvolvimento (são muitos os sucessos e insucessos de um e outro sistema) nem mesmo se teria sido possível à Europa Continental (de uma maneira geral) ou à Inglaterra terem seguido modelos de desenvolvimento diferentes daqueles que tiveram.
Pretende-se apenas mostrar que o facto de terem seguido um ou outro modelo induziu formas de relacionamento diferentes entre cidadãos e o estado, induziu a criação e desenvolvimento de simbioses societárias diferentes e, isso teve (e tem) efeitos sobre o carácter das respectivas Democracias e cidadania.
Inclusive tem consequências no grau de eficiência social alcançado pelas respectivas Nações, o que assume particular (e até decisiva!) importância agora que a globalização impede os Países de se manterem “fechados”.
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