quinta-feira, fevereiro 23, 2006

O entendimento do conceito de “cidadania” em Portugal (I)

Como é, comummente, sabido as línguas de grande parte da humanidade não possuem o conceito de “liberdade”; habitualmente, só se faz essa afirmação relativamente à língua árabe, mas efectivamente, com excepção das línguas ocidentais, as restantes línguas não possuem termo próprio para designar tal conceito.

A não existência desse conceito numa língua significa que os respectivos detentores desconhecem a praxis social que lhe corresponde.

A importação do conceito de liberdade de outras línguas não significa, por si só, entendimento do seu conteúdo se, a praxis social correspondente, não for vivida.

A importação de um conceito, que corresponde a uma forma particular de vivência comportamental de todos os membros e das instituições de uma sociedade, não assegura que esse conceito seja entendível nessa cultura se não tiver havido a oportunidade dessa vivência – ou seja, o conceito (apesar de importado) não é entendível, pelos detentores da língua que o importou, enquanto ele não tiver sido integrado na respectiva cultura e enquanto não tiver passado a constituir praxis social (pelo menos, para grande parte dos seus membros e das suas instituições) nessa sociedade.

Com o conceito de cidadania passasse algo de semelhante.

Um dos comentários mais frequentes às minhas publicações, nos meus blogues, é “o que entendes por cidadania?”

Em geral, os portugueses entendem que cidadania é igualdade e solidariedade, sociais; mais ainda, entendem que o conceito de cidadania se realiza através do Estado – sendo um conceito recentemente introduzido em Portugal, ele “ajustou-se” à cultura portuguesa (na qual o papel do Estado sempre foi fortemente interventor); ou seja, cidadania e forte intervenção estatal passaram a ser olhadas como conceitos que se inter-sustentam.

Os cidadãos portugueses, a cultura portuguesa, que nunca teve uma praxis social correspondente ao conceito de cidadania, não entende o que é a cidadania, do mesmo modo que a cultura árabe não entende o conceito de liberdade (aliás, o recente debate sobre os cartoons de Maomé, a pretensa introdução do “cartão único” e a “invasão”, pela Judiciária, do Jornal “24 horas” mostram bem que, mesmo o conceito de liberdade, não é correctamente entendido na cultura portuguesa).

Quando me refiro a “não é correctamente entendido” estou a fazê-lo relativamente ao entendimento e à correspondente praxis social existente nas culturas que criaram esses conceitos.

Ora o conceito de cidadania foi inventado (e amplamente aplicado) pela cultura anglo-saxónica; no início do século XIII, através da habeas corpus, deu-se início a um longo processo (que incluiu o enforcamento de um rei inglês, acusado de alta traição pelos cidadãos representados no Parlamento) que aperfeiçoou o parlamentarismo em Inglaterra, que retirou ao rei a possibilidade de lançar impostos dentro da Inglaterra, que limitou o poder intervencionista do Estado na sociedade e que criou a cidadania, enquanto conceito e praxis social.

Já no século XVIII, na Europa Continental, há frequentes referências à cidadania inglesa como algo de estranho e diferente: “enquanto por detrás de uma grande obra em Inglaterra, está de certeza um nobre inglês; por de trás de uma grande obra em França está, de certeza o Estado francês”.

A independência dos EUA vem trazer uma nova ampliação, não do conceito de cidadania, mas da sua praxis social; a cidadania inglesa, essencialmente, dominada pela nobreza e, depois, pela burguesia, passa a estender-se, nos EUA, a todas as pessoas (é interessante notar que a única guerra civil existente nos EUA teve por fim acabar com a escravatura).

É esse conceito de cidadania que, após a 2ª guerra mundial, é assumido em geral por todos os países ocidentais (antes do inicio da 2ª guerra mundial, parte significativa dos países ocidentais era governada sob sistemas fascistas – sistemas fortemente anti-cidadania).

Como se vê, cidadania não tem nada a haver com igualdade e solidariedade social e muito menos com intervencionismo do Estado.

Nos países da origem do conceito de cidadania e da correspondente praxis social, a igualdade e a solidariedade social são uma consequência social do amplo exercício da cidadania por parte de todos os cidadãos e, cidadania e intervencionismo do Estado são conceitos “significativamente” antagónicos.

O conceito de cidadania portuguesa está pois muitíssimo longe do conceito anglo-saxónico de cidadania; de certo modo, a cultura portuguesa adulterou o conceito de cidadania de modo a ajustá-lo à sua tradição cultural: Estado forte e amplo bloqueia a toda a iniciativa, autónoma e independente, da sociedade civil (cultura anti-cidadania).

O 25 de Abril vem fortalecer a cultura intervencionista do Estado (porque ainda mais forte nas culturas de esquerda, que os intelectuais de Abril professam); a cidadania, entendida como igualdade e solidariedade social impostas pelo Estado, provoca a elevação do aumento significativo dos impostos (os cidadãos e as empresas portugueses são crescentemente descapitalizadas em favor do Estado e do seu crescente intervencionismo) e o Estado Português passa a ultra regulamentar, ainda mais, todas as iniciativas da sociedade civil e a pretender assumir-se como parceiro social em todas as iniciativas socialmente significas.

Concluindo, a cultura portuguesa ainda não entendeu o que significa o conceito de cidadania; pelo caminho que levamos, nunca iremos entendê-lo – já estamos a pagar por isso, mas ainda iremos pagar muitíssimo mais caro.

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